Afeganistão. EUA e NATO deixam Bagram e abrem caminho a "período de incerteza" no país

por Inês Moreira Santos - RTP
Mohammad Ismail - Reuters

A retirada de todas as forças militares estrangeiras do Afeganistão só está prevista para 11 de Setembro de 2021, mas as forças norte-americanas e restantes forças da NATO já deixaram a base de Bagram, a maior do Afeganistão, que foi devolvida ao exército afegão. A partida das forças internacionais marca o início de um período de incerteza entre a população.

Depois de 20 anos no Afeganistão, as tropas da NATO e dos Estados Unidos começaram a retirar-se, segundo anunciaram as autoridades esta sexta-feira, abrindo caminho para um período de grande incerteza para o país, que ainda é marcado diariamente pela violência.

A retirada das forças norte-americanas estava prevista para 11 de setembro mas o presidente Biden ordenou que se completasse o processo até ao dia 4 de julho, feriado nacional nos Estados Unidos. Também a NATO, que anunciou em maio a saída de parte das suas tropas, antecipou a retirada.

"O aeroporto de Bagram foi oficialmente entregue ao Ministério da Defesa. As forças norte-americanas e da coligação retiraram-se completamente da base e, a partir de agora, as forças armadas afegãs vão proteger a base e usá-la para combater o terrorismo", indicou na rede social Twitter o porta-voz adjunto do Ministério da Defesa afegão, Fawad Aman.

Também um responsável da Defesa norte-americano, que não quis ser identificado, confirmou antes que "todas as forças da coligação" tinham abandonado Bagram.

As tropas norte-americanas ocupavam desde 2001 esta base, que tem capacidade para acolher até dez mil soldados, tem duas pistas de aterragem e permite estacionar pelo menos 110 aviões. A base tem também um hospital e uma prisão. Os militares dos EUA deixaram agora o campo de aviação de Bagram, o epicentro do combate aos Talibãs e aos membros da Al Qaeda ligados aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.

Contudo, o principal comandante norte-americano no Afeganistão, o general Austin S. Miller, "ainda mantém toda a capacidade e autoridade para proteger as forças". Estima-se que ainda estejam entre 2.500 e 3.000 soldados norte-americanos no país, perfazendo um total de sete mil soldados nas forças da NATO.

O anúncio da retirada acontece numa altura em que os grupos islâmicos da região ganham força, tendo já tomado vários bastiões no Afeganistão e estando a conquistar terreno.

Miller reuniu-se, esta sexta-feira, com o presidente afegão Ashraf Ghani e, de acordo com a Associated Press, esteve em debate "a continuação da assistência e cooperação dos EUA ao Afeganistão, especialmente no apoio às forças de defesa e segurança". Embora ainda não sejam conhecidos os detalhes, sabe-se que os Estados Unidos já se comprometeram a pagar quase quatro mil milhões de dólares anuais até 2024 para financiar as forças de segurança afegãs.

Mesmo com a retirada, também a NATO quer continuar a apoiar as forças afegãs no treino e formação das suas fileiras, assim como pretende continuar a ter um pequeno contingente para defender o aeroporto de Cabul.

Desde o início de maio deste ano, os talibãs lançaram várias ofensivas em todo o país, à medida que as forças governamentais lutam para consolidar posições nas áreas mais urbanas. Por isso, a capacidade de manter o controlo da base aérea de Bagram será fundamental para preservar a capital, Cabul, e manter a pressão sobre os talibãs.

Durante as últimas décadas, recorde-se, a base tem sido central para a intervenção dos EUA no Afeganistão, onde a luta contra os talibãs e os aliados da Al-Qaeda tem sido levada a cabo através de ataques aéreos e missões de abastecimento a partir deste aeroporto.
Guerra civil à vista?

O administrador distrital do Afeganistão para Bagram, Darwaish Raufi, afirmou à imprensa que a partida das forças estrangeiras ocorreu durante a noite de quinta para sexta-feira, sem qualquer coordenação com as autoridades locais, e como resultado, dezenas de saqueadores locais conseguiram forçar os portões desprotegidos antes que as forças afegãs recuperassem o controlo.

"Alguns foram parados e outros foram presos. Os restantes foram retirados da base", Raufi disse à Associated Press, acrescentando que foram assaltados vários edifícios antes de as Forças de Segurança e Defesa Nacional Afegãs (ANDSF) assumirem o controlo.

"Infelizmente, os norte-americanos partiram sem nenhuma coordenação com as autoridades distritais de Bagram ou com o gabinete do governador", disse Raufi. "Neste momento, as nossas forças de segurança afegãs assumem o controlo dentro e fora da base".

Os talibãs congratularam-se, entretanto, com a partida das forças estrangeiras da base, situada a 50 quilómetros a norte de Cabul e base das operações norte-americanas durante a guerra desencadeada em 2001 (dali partiam os ataques aéreos contra os rebeldes e os seus aliados da Al-Qaeda e era organizado o abastecimento das tropas).

"Estamos muito satisfeitos e apoiamos esta partida. A sua retirada completa [do Afeganistão] permitirá que os afegãos decidam por si mesmos o futuro", declarou o porta-voz dos talibãs, Zabihullah Mujahid, à agência France-Presse.

Desde que foi anunciada a retirada das forças militares, os talibãs intensificaram as ofensivas em todo o país, assumindo o controlo de dezenas de distritos rurais, enquanto as forças de segurança afegãs consolidavam a sua presença nas grandes cidades. Segundo os analistas, a capacidade do exército afegão de conservar o controlo do aeródromo de Bagram poderá ser uma das chaves para manter a segurança junto à capital, Cabul, e a pressão sobre os talibãs.

"Em casa, os norte-americanos e as forças aliadas verão de longe ser reduzido a cinzas o que lutaram tanto para construir, sabendo que os homens e as mulheres afegãos com quem lutaram correm o risco de perder tudo", adiantou o especialista Nishank Motwani, baseado na Austrália.

Agora, os habitantes de Bagram prevêem uma deterioração da situação de segurança e até económica devido à partida das tropas estrangeiras. Enquanto alguns afegãos afirmam que a partida das forças estrangeiras é um desenvolvimento positivo, outros perderam os empregos e sentem que o país enfrenta um momento de incerteza.

Ao longo dos anos, centenas de milhares de militares norte-americanos e da NATO, e alguns subcontratados, passaram pela base de Bagram, que chegou a parecer uma cidade em miniatura, com piscinas, cinemas e spas, e ainda um passeio com restaurantes de 'fast food', como o Burger King e a Pizza Hut.

Construída pelos Estados Unidos para o seu aliado afegão durante a Guerra Fria nos anos 1950 para o proteger da União Soviética a norte, a base tem também uma prisão que recebeu milhares de prisioneiros talibãs e 'jihadistas'.

Ficou claro, logo após o anúncio de que os EUA iam pôr fim à "guerra infinita", com a retirada das tropas, que a partida dos soldados norte-americanos e dos 7.000 aliados da NATO podia significar a ameaça de deterioração da segurança no Afeganistão.

O general Austin S. Miller considerou, esta semana, que a rápida perda de territórios em todo o país para os talibãs - vários com valor estratégico significativo - "é preocupante". O general norte-americano advertiu ainda que as milícias implantadas para ajudar as forças de segurança nacional podem levar o país à guerra civil.

"A guerra civil é um cenário possível, se continuar na trajetória que está agora, e devia ser uma preocupação do mundo", disse ainda.

Miller afirmou também que, por enquanto, detém as armas e a capacidade para ajudar as Forças de Segurança e Defesa Nacional afegãs, mas defendeu que pacificar o país devastado pela guerra exige uma solução política.

"Só um acordo político trará paz ao Afeganistão. E não foram só os últimos 20 anos [de conflito]. Foram, na realidade, os últimos 42", sublinhou.
Afegãos temem o futuro

Quando anunciou a retirada dos militares, Joe Biden afirmou que os Estados Unidos cumpriram o seu dever no Afeganistão - deter e punir a rede terrorista Al-Qaeda, autora dos ataques de 11 de setembro. Depois de quase 20 anos, o presidente norte-americano disse que estava na hora de pôr fim à "guerra infinita".

Muitos cidadãos afegãos, no entanto, lamentam a retirada das tropas e consideram que as forças internacionais estão a deixar um país profundamente empobrecido, à beira de outra guerra civil e com um agravamento da ilegalidade que aterroriza alguns mais do que a conquista de territórios pelos talibãs.

De acordo com a AP, os afegãos afirmam que estão a ressuscitar milícias com um histórico de violência devastadora para lutar contra os insurgentes.

Desde o anúncio da retirada das forças estrangeiras, milhares de habitantes de Cabul tentam fugir do país e estão a pedir vistos nas embaixadas.

"O nosso pessoal está a pensar que talvez vá começar uma guerra civil e esse é o principal problema pelo qual as pessoas querem ir embora", disse Abdullah Saeed, professor da Universidade Politécnica de Cabul. "Os nossos partidos políticos estão a receber armas. Toda a gente tem armas aqui, é por isso que as pessoas estão com medo".

Além disso, o encerramento de algumas embaixadas ocidentais e os avisos de outras para que os seus cidadãos saiam do país está a aumentar o medo entre a população.

Para Tamim Asey, fundador e presidente executivo do Instituto de Estudos de Guerra e Paz, com sede em Cabul, o "maior inimigo é a incerteza".

"Não é que não tenhamos esperança. Não é que não tenhamos a capacidade de formular ou criar uma visão para o país na ausência da comunidade internacional. É aquela nuvem negra de incerteza a aproximar-se".
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