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Alemanha. Como a crise do Parlamento turíngio não foi levada a sério
A política alemã tem fama, e muitas vezes proveito, de ser séria, sisuda ou mesmo enfadonha. Mas a crise no Landtag de Erfurt mostrou que já nada é o que era. Políticos da velha guarda cedem o passo a aprendizes de feiticeiro. Ditos e feitos caricatos sucedem-se a um ritmo sem precedentes.
Logo desde o início, sucederam-se as peripécias anedóticas e grotescas. A primeira foi a de o partido de extrema-direita, AfD (Alternativa para a Alemanha), ter apresentado o seu próprio candidato à presidência do Governo turíngio, o "independente" Christoph Kindervater, mas combinando em reunião secreta do grupo parlamentar que ninguém votaria nele. E era mesmo assim que ia ser: na sessão plenária, nenhum eleito da AfD votou em Kindervater - nem ele próprio.
Um candidato a fingir e um vencedor "surpreendido"
Nessa sessão, os liberais e democratas-cristãos iam juntar menos votos a favor do candidato liberal Thomas Kemmerich do que a esquerda, a social-democracia e os verdes a favor do antigo presidente, agora candidato à recondução, Bodo Ramelow, do Partido da Esquerda. Quando descobriram que tinham recebido também os votos da AfD e tinham ganho a eleição, liberais e democratas-cristãos mostraram-se surpreendidos, mas não desconcertados. E prepararam-se para constituir o novo governo.
A AfD vangloriou-se depois publicamente de ter "atraído Kemmerich ao pódio", para votar nele e para impedir a vitória de Ramelow. A direita liberal e democrata-cristã declarou-se surpreendida e até enganada. Mas a surpresa era duvidosa, porque nos dias anteriores tinha havido intensas conversações telefónicas com o dirigente nacional do FDP, Christian Lindner, e com a dirigente nacional da CDU, Annegret Kramp-Karrenbauer. Esta, pelo menos, tinha advertido o seu homólogo liberal do perigo de o FDP, o mais pequeno partido do parlamento, ser investido com a presidência do Governo em total dependência dos votos "fascistas", como disse Karrenbauer.
As anedotas de Lindner
Quando Lindner tentou argumentar que também ele fora surpreendido, deu o flanco aos desmentidos de Karrenbauer, que com ele discutira o problema. Mas, principalmente, deu o flanco para lhe serem recordadas duas citações suas do passado recente.
Uma era a frase com que no início de 2018 justificou a sua retirada das negociações para participar no Governo Federal (numa coligação "jamaica", ao lado de verdes e democratas-cristãos). Não tendo obtido todos os ministérios que pretendia, Lindner retirou-se dizendo: "Mais vale não governar do que governar mal". Agora, os manifestantes que vieram à rua protestar muniram-se de cartazes parafraseando o mesmo Lindner: "Mais vale governar com fascistas do que não governar".
A outra anedota baseia-se na citação das palavras lançadas por Lindner contra os jovens que começaram a manifestar-se às sextas feiras em defesa do ambiente. O dirigente liberal dissera nessa altura que os jovens deviam abster-se de manifestações, porque a defesa do clima "é um assunto para profissionais". Agora, lembrando-lhe essa arrogância, os manifestantes criticaram a sua alegada ingenuidade e a sua alegada surpresa, atirando-lhe à cara: "A política é um assunto para profissionais".
A anedota de Karrenbauer
Depois de tudo isto, Kramp-Karrenbauer repreendeu os seus correligionários da CDU turíngia por terem votado ao lado dos fascistas, mas tentou ainda esquivar-se a admitir um governo da esquerda, apelando aos verdes e aos social-democratas para que retirassem o seu apoio a Ramelow e para que apresentassem algum candidato próprio que "unisse" em vez de dividir como alegadamente faria o candidato da esquerda.
Verdes e social-democratas replicaram-lhe secamente que, depois do fiasco que a CDU protagonizara, e depois da incapacidade que a própria Karrenbauer mostrava para se impor aos democratas-cristãos turíngios, a sua pretensão de dirigir as opções eleitorais dos outros dois partidos só podia ser vista como uma anedota. E, na verdade, Karrenbauer já pouco durou à frente do partido.
A anedota de Gauland
A mais recente anedota da política local turíngia foi a proposta de Alexander Gauland, figura emblemática da AfD, que preconizou o voto dos seus correligionários a favor de um governo da esquerda, presidido por Bodo Ramelow.
Argumento de Gauland: como a esquerda disse que os liberais não podiam assumir a presidência do Governo por terem recebido os votos da AfD, a AfD deveria agora votar a favor da esquerda para torná-la prisioneira do seu próprio argumento e impedi-la, em boa coerência, de assumir a presidência do Governo. Se os liberais não podiam com votos da AfD, ainda menos poderá a esquerda com votos da AfD.
A proposta foi imediatamente recusada pela maioria dos deputados da extrema-direita. Nenhum deles quis dar o seu voto a um governo de esquerda, nem que fosse para lhe criar um embaraço argumentativo.
Esse embaraço seria, aliás, mínimo ou nulo, porque o Partido da Esquerda, como partido mais votado do parlamento local, não ficaria a depender da extrema-direita para futuras votações - ao contário do partido liberal FDP que, como menos votado de todos os partidos, ficaria sempre refém da extrema-direita e pendente do seu apoio para fazer aprovar quaisquer propostas.