Black Friday alimenta o consumismo mesmo com compradores "exaustos", menos dinheiro e maior consciência ambiental

Em Espanha, novembro já ultrapassa janeiro em compras graças às promoções e apesar da desconfiança sobre as ofertas fraudulentas. O estado mental e político da sociedade reflete-se nas formas de consumo, mas o mercado também se está a adaptar com uma forte aposta nas compras online.

Um Olhar Europeu com RTVE /
Mario Tama / Getty Images via AFP

"Não estar aborrecido - nunca estar aborrecido - é a norma na vida dos consumidores. E é uma norma realista, um objetivo atingível (...) Para aliviar o tédio é preciso dinheiro - muito dinheiro". O sociólogo Zygmunt Bauman faz assim uma crítica à sociedade de consumo no seu ensaio de 1998 "Trabalho, consumismo e os novos pobres" que, apesar de terem passado 27 anos, continua a ser atual. Dezembro é o mês de consumo por excelência em Espanha e, desde há alguns anos, o mês de novembro acelera ao ponto de ultrapassar o mês de janeiro em termos de compras. A razão: estratégias de mercado importadas dos Estados Unidos, como a Black Friday.

A indústria quer continuar a criar desejos para satisfazer e, assim, como diz Bauman, faz com que nunca estejamos entediados. Mas os tempos mudam, como é que consegue fazer isso numa sociedade mais consciente da crise climática e "esgotada" pelos milhares de impactos que procuram a nossa atenção na rua e nas redes sociais?

"Investir tremendamente em campanhas de marketing e publicidade", responde rapidamente a jornalista especializada em consumo sustentável Brenda Chavez, com cinco livros publicados desde 2017. Os gastos globais com publicidade digital atingem 650 mil milhões de dólares este ano, de acordo com a consultora Precedence Research, e espera-se que continuem a aumentar.

Em Espanha - onde a Black Friday não tem uma raiz emocional ligada ao dia a seguir ao Dia de Ação de Graças - a data tem servido o seu propósito desde 2012, quando o governo liberalizou os saldos e deixou de os limitar no calendário.

"Quando só havia saldos em janeiro ou julho, víamos aquelas imagens de pessoas de manhã cedo à espera que a porta da loja abrisse. Já não se vê isso porque se sabe que vem aí outro: se se perde a Black Friday, vem a Cyber Monday e depois os saldos", reflecte Neus Soler, consultor e professor de marketing digital na Universidade Aberta da Catalunha.

Entre a "desconfiança" devido a falsos descontos e o sucesso devido à sede de pechinchas

Para além da perda de um "sentido de urgência" com as promoções, há também "desconfiança" sobre a veracidade dos descontos. Um estudo do Ministério do Consumo concluiu que 70% das vendas anunciadas nas lojas online durante a Black Friday 2023 eram falsas ou enganosas. Além disso, recentemente, os tribunais aprovaram as sanções impostas a sete empresas que aumentaram os preços nos dias anteriores e depois os reduziram com descontos para o valor original. Atualmente, outras estão a ser investigadas pela mesma prática em 2024.

Em suma, a Black Friday está certamente a funcionar em Espanha: na Black Friday do ano passado, a Visa registou um aumento de 27% no volume de transacções em comparação com um dia normal e espera-se uma tendência crescente no futuro.

"Está a ir de vento em popa", diz o especialista em marketing e estratégia de marca Emilio Llopis, que lembra que em tempos de inflação e perda de poder de compra, o consumidor está mais atento às ofertas. E a realidade é que, independentemente de datas específicas, o comércio a retalho ainda não recuperou o nível de vendas anterior à crise financeira de 2008, de acordo com os dados do índice calculado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).

Entretanto, 76% das empresas com comércio eletrónico apontam a Black Friday como uma das campanhas mais importantes em volume, ao mesmo nível que o Natal, de acordo com um inquérito do Centro Logístico Espanhol, que também alerta: 40% aumentam o seu volume de negócios, mas apenas 27% melhoram a sua rentabilidade.

E, neste último caso, as grandes empresas estão a ganhar o jogo. "As pequenas empresas tiveram de aderir, porque é a dinâmica, mas não gostam muito e não compensa. São as grandes perdedoras deste tipo de jornadas promocionais", afirma Soler, da UOC.

Consumidores exaustos à procura de "comunidade"

O esforço consumista por parte das marcas ocorre enquanto há modas nas redes como o núcleo do subconsumo (que promove o subconsumo), fala-se mais do que nunca de "eco-ansiedade" em relação à nossa pegada de carbono e as previsões de mercado da empresa de consultoria WGSN antecipam o aparecimento da "grande fadiga": "um estado coletivo de cansaço, stress crónico e exaustão emocional, que aprofunda o sentimento de isolamento entre as pessoas".

Mas até isso pode ser uma vantagem comercial. Um outro relatório do WGSN explica como chegar aos consumidores que são atraídos pelo "significado de comunidade, de carinho" ou àqueles que, "no meio de uma crise de desinformação", procuram "factos" sem truques ou histórias. O estado mental e político da nossa sociedade reflete-se nas nossas formas de consumo e o mercado também se adapta.

Para isso, os especialistas destacam que a tecnologia (da automação à coleta e interpretação massiva de dados) permite hoje uma maior personalização das promoções. "São desenvolvidas campanhas estratégicas voltadas para donas de casa de determinadas idades ou jovens de determinado perfil", diz Chávez.

De acordo com Soler, as ações que criam "comunidade de marca", "experiências digitais" e "benefícios exclusivos" são particularmente eficazes para atingir as gerações mais jovens.

No entanto, Llopis aconselha as empresas a distinguir entre "modas" (modas passageiras que não afetam realmente os resultados) e "tendências" (mais sustentadas ao longo do tempo e com potencial para afetar o seu negócio). Na sua opinião, as empresas devem prestar atenção a estas últimas para se poderem adaptar a elas ou, pelo menos, incorporá-las na sua estratégia.

O dilema dos millennials e da geração Z: mais consciência ecológica, mas menos poder de compra


E entre essas tendências consolidadas nos últimos anos, destaca-se uma maior preocupação com os danos que a produção continua a causar ao planeta. Neste caso, a especialista em consumo sustentável Brenda Chávez descreve um paradoxo:

"Os Millennials e a Geração Z são as gerações mais conscientes, mas também encontraram um mercado de trabalho muito precário, têm problemas muito graves de acesso à habitação, etc. Não têm poder de compra e acabam por comprar de forma ultra-rápida, o que gera mais impacto", explica. Curiosamente, o consumidor boomer, que talvez não tenha esse discurso socialmente responsável como bandeira, é o que mais frequentemente faz compras pensadas e onde a qualidade é mais importante do que a quantidade.

Mas o problema aqui é de fundo. Llopis cita um relatório do Boston Consulting Group (BCG) de 2022, baseado num inquérito a 19.000 consumidores nos Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Itália, China, Índia e Brasil, que concluiu que 80% dos consumidores afirmaram estar preocupados com a sustentabilidade, mas apenas 1% a 7% estavam dispostos a pagar mais por uma compra sustentável.

Em todo o caso, o autor do livro "Good Brands, Good Brands" rejeita liminarmente as campanhas de greenwashing e greenwishing e alerta para o facto de estas poderem prejudicar a reputação de uma empresa. "Os consumidores querem honestidade", o que significa que esperam uma mudança real na produção e que as empresas sejam honestas e transparentes nos seus processos.

"As marcas fazem o que o mercado exige. Se a moda rápida não acabou, é porque continua a ser consumida", afirma Neus Soler, professor da UOC, que se centra na "responsabilidade" que os consumidores também têm e no seu poder de provocar mudanças.

Por esta razão, também perguntámos a Chávez como consumir de forma responsável: "Comprem pouco e bem. Comprem exatamente o que precisam, nem mais nem menos", resume, e termina com uma reflexão que se liga à teoria do tédio de Bourdieu, que iniciou esta reportagem: "Quanto mais satisfeitos estivermos com a nossa vida, com os nossos laços e com quem somos, menos consumimos".

RTVE / 27 Novembro 2025 07:44 GMT

Edição e Tradução / Joana Bénard da Costa - RTP
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