Bolívia de Evo Morales permanece bastião de esquerda numa América Latina em mutação

A Bolívia do Presidente Evo Morales, que hoje celebra dez anos seguidos no cargo, permanece um bastião da "grande mudança" que atingiu a América Latina no início deste século, agora em recuo devido à crise económica, ao desgaste político ou à corrupção.

Lusa /

Evo Morales, chegou ao poder em 22 de janeiro de 2006, cumpre o seu terceiro mandato e afirma-se, a par do falecido presidente venezuelano Hugo Chávez, como o rosto da renovação da esquerda em nome da revolução social na política, do discurso "anti-imperialista", até então confinado a Cuba, dos direitos das populações autóctones.

Hoje, mantém o objetivo de permanecer no poder até 2025, quando se celebram os 200 anos da independência da Bolívia. O "processo de mudança" protagonizado pelo primeiro chefe de Estado boliviano de origem indígena aimara implicou assim a convocação de um referendo para 21 de fevereiro, onde vai ser submetida a votação uma reforma constitucional para permitir que seja de novo candidato em 2019.

Desde que assumiu o poder, o chefe de Estado indigenista e esquerdista desencadeou um conjunto de reformas para desmontar o modelo "neoliberal", fazer do Estado um ator central da economia e impulsionar a industrialização do país.

Com o objetivo de assinalar a subida ao poder de um representante do "povo indígena" aimara ou quéchua, a maioria da população do país, Morales vai agradecer hoje à Pachamama (Mãe Terra) por ter cumprido dez anos consecutivos no poder numa cerimónia na cidadela pré-hispânica de Tiahuanaco.

Mas se na Bolívia o "processo de mudança" segue em marcha, os sobressaltos políticos na Argentina e Brasil, e a pesada derrota do chavismo nas legislativas de 6 de dezembro, representaram importantes reveses para a esquerda na América Latina, e quando a crise económica coloca novos desafios aos governos eleitos pelo voto popular.

Duas semanas após o triunfo do liberal Mauricio Macri nas eleições presidenciais argentinas, a oposição venezuelana de centro-direita garantia uma ampla maioria parlamentar.

A sua vitória pôs termo a 16 anos de hegemonia chavista (com origem em Hugo Chávez, no poder entre 1999 e 2013), tal como Macri sucedeu a 12 anos de governos de Nestor Kirchner e depois de sua mulher, Cristina Kirchner.

No início dos anos 2000, Chávez e Kirchner tinham sido os iniciadores de um "efeito dominó" de vitórias da esquerda na região.

Mas 15 anos depois esta corrente está ameaçada incluindo no Brasil, a primeira potência da América Latina, e onde a Presidente Dilma Roussef foi ameaçada com um processo de destituição e muitos dos seus colaboradores estão indiciados por corrupção no mega escândalo da Petrobras.

A conquista do poder pela esquerda em muitos países da América Latina (incluindo no Paraguai e Honduras, onde os dois presidentes serão de seguida destituídos) foi acompanhada por uma ambiciosa política social que beneficiou as camadas populares, numa região considerada a mais desigual do mundo. E pela criação ou reforço de fóruns de cooperação regionais que contrariassem a tradicional hegemonia do "império" na região.

A popularidade destes governos assentava em grande medida nos apoios e nos programas sociais, que dependiam dos recursos orçamentais provenientes dos preços elevados das matérias-primas, o principal produto de exportação da região.

Dezenas de milhões de pessoas foram retiradas da pobreza extrema, mas quando estes recursos começaram a perder valor, regressaram as dificuldades. Assim, um fator comum a todos estes países foi a "baixa do preço" das matérias-primas, sob o efeito de uma procura chinesa mais fraca, a par do desgaste governativo e da corrupção, afinal um fenómeno endémico e transversal.

Na Venezuela, o país com as mais importantes reservas petrolíferas do mundo, foi a queda do preço do crude que afundou a economia, originando graves penúrias e uma inflação galopante. Anunciava-se o fim da "idade de ouro" das matérias-primas e do período de "excessos", regressava a austeridade e a esquerda sentia o desgaste de anos seguidos na governação, incluindo nos principais bastiões: na própria Bolívia, Morales perdia terreno nas eleições regionais, e o seu homólogo equatoriano Rafael Correa renunciava a um terceiro mandato em 2017.

No entanto, Morales foi reeleito de forma categórica em outubro de 2014 para um terceiro mandato de cinco anos, e Rafael Correa, como Daniel Ortega na Nicarágua, continuam a garantir forte popularidade.

Também no Chile e no Uruguai, a esquerda permanece no poder, com Michelle Bachetel e Tabaré Vázquez.

Na sequência das derrotas da esquerda na Argentina e Venezuela, Evo Morales apelou a uma "profunda reflexão" em defesa das "revoluções democráticas", enquanto Daniel Ortega considerou necessário manter a herança de Hugo Chávez.

Diversos observadores associam o enfraquecimento dos governos de esquerda na América Latina à corrupção e à propensão em repetir alguns dos esquemas da direita, como o de "privilegiar uma pequena minoria", podendo implicar o contínuo reforço da direita, que inclui no seu programa a "extração dos produtos mineiros, petróleo e outros recursos naturais".

No entanto, e apesar do início de uma nova etapa política na América Latina, ainda não é claro que se registe uma viragem global, mas antes uma "reconfiguração política" face à crise económica e a necessidade de o poder se concentrar nas necessidades efetivas do continente.

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