Brasil. Vacinação de pessoas brancas é duas vezes superior à de pessoas negras

por Inês Moreira Santos - RTP
Antonio Lacerda - EPA

A vacinação contra a Covid-19 no Brasil começou, há dois meses, com a enfermeira negra Mônica Calazans, mas neste momento há mais pessoas brancas vacinadas. A conclusão é da investigação da Agência Pública que revela também que a mortalidade é superior em comunidades negras brasileiras.

Até agora, cerca de 8,5 milhões de pessoas já tomaram a primeira dose de uma vacina contra o coronavírus no Brasil. Contudo, os dados indicam que a proporção é de aproximadamente duas pessoas brancas para cada pessoa negra vacinada.

"A desigualdade permanece se considerarmos a divisão da população brasileira: há menos negros vacinados em relação à quantidade de brasileiros que se declaram negros quando comparada à população branca que foi vacinada", indica o relatório da Agencia Pública.

Mesmo com o Plano Nacional de Vacinação do Ministério da Saúde, o Brasil vacinou menos de cinco por cento da sua população. E apesar de incluir populações negras entre os grupos prioritários há menos negros a serem vacinados.

Mas os dados mostram também que a desproporção não é apenas na vacinação. A diferença "é ainda mais grave devido à desigualdade da mortalidade pela covid-19 no Brasil", uma vez que, das pessoas que tiveram a doença no país, "há proporcionalmente mais mortes entre negros do que entre brancos".

Além disso, a "maioria absoluta" dos casos confirmados de infeção e de mortos é de pessoas negras.
Brancos à frente na lista dos prioritários?

De acordo com os dados divulgados esta quinta-feira pela Agência Pública, ainda foram poucas as pessoas que receberam a primeira dose de uma vacina contra a Covid-19. Mas a "fila" para a vacina parece ser mais rápida para brancos do que para negros.

Até ao dia 14 de março, apenas cerca de 4,5 por cento da população tomou a primeira dose. E segundo a instituição apurou, "há 3,2 milhões de pessoas que se declararam brancas e que receberam a primeira dose de uma vacina" e entre "pessoas negras esse número cai para pouco mais de 1,7 milhões".

A disparidade é mais acentuada ao verificar-se que o Brasil tem 88,7 milhões de brancos e 119,2 milhões de negros. Mas, por cada duas pessoas brancas vacinadas, apenas uma pessoa negra recebeu a vacina.

Contudo, a percentagem populacional já inoculada é pequena. Apenas 3,66 por cento da população branca já foi vacinada com a primeira dose e só 1,48 por cento da população negra está vacinada. Isto é, enquanto mais de três em cada 100 pessoas brancas receberam a primeira dose da vacina, menos de duas em cada 100 entre a população negra receberam a mesma dose.
Diferenças entre populações

Entre os especialistas há algumas explicações para estas desigualdades, como o facto de a população negra ser mais jovem e a longe de vida expectável não ser igual entre estas populações.

A médica Rita Borret, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, explicou à Agencia Pública que se pode atribuir a desigualdade na vacinação à diferença na expectativa de vida destas populações. 

"A população negra que chega a mais de 90 anos é menor que a população branca [na mesma faixa etária] porque a expectativa de vida da população negra é menor, tanto pela morte na juventude negra, por causas externas, como por todos os outros acometimentos que o racismo impacta, como a forma como se acede à saúde", afirmou.

De facto, segundo os últimos censos do IBGE, a população negra é comparativamente mais jovem do que a população branca.

Embora a população negra seja muito superior à população branca, as pessoas negras representam uma minoria em todas as faixas etárias acima dos 40 anos de idade. O relatório indica mesmo que, a partir dos 60 anos, há cerca de 30 por cento a mais pessoas brancas do que negras.

Mas há ainda outros fatores, como a distribuição dos grupos prioritários. Por exemplo, os profissionais das limpezas e de segurança em instituições de saúde e hospitais não foram considerados prioritários na primeira fase do Plano de Vacinação. E estes setores tendem a ter uma maior presença de profissionais negros.

"Enquanto alguns municípios vacinaram médicos e enfermeiros, outros municípios entenderam que todos os que estavam na linha de frente, dos técnicos de enfermagem aos profissionais da limpeza que estão trabalhando nas unidades de saúde, garantindo a diminuição da contaminação, foram considerados", explica a médica.

A divisão entre profissões é bastante acentuada: entre os vacinados, os negros são principalmente pessoas em situação de rua (59,29 por cento); já os brancos são a maior parte dos vacinados em várias profissões, como bombeiros (80,45 por cento), médicos e enfermeiros.

No total, foram vacinados 67.391 médicos brancos e 22.110 médicos negros.

Já o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Hilton Silva, e membro do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), considera que um dos fatores que acentuam a desigualdade na vacinação é a dificuldade no acesso aos pontos de vacinação.

"Muitas vezes é uma questão de locomoção. Vai ter a população branca que tem, por exemplo, a possibilidade de pegar o seu carro e ir para um drive thru para ser vacinado, enquanto a pessoa idosa que mora na periferia, que mora no quilombo ou numa área mais remota não tem essa possibilidade porque não tem esse transporte", começa por explicar. "Percebemos que isso em si já oferece um acesso diferencial em relação à vacinação".

Para Hilton Silva, os dados sugerem que a estratégia de vacinação no país, além de estratificar por idade e por profissão, também devia guiar-se por outros critérios, como por região e por taxa de mortalidade.

"Mesmo entre os grupos prioritários, seria preciso estabelecer a prioridade das prioridades, porque o idoso branco é diferente do idoso negro, e isso se reflete nas taxas de mortalidade". 

De acordo com o levantamento da Agencia Pública, em todas as faixas etárias há menos negros vacinados que brancos — entre pessoas acima de 60 anos que foram vacinadas, são duas vezes mais as pessoas brancas vacinadas do que negras.

"A diferença é tão grande que se observa mesmo quando se corrige a divisão da população brasileira entre brancos e negros por idade: há mais brancos idosos que negros, apesar de a população negra ser maioria no país. Ainda assim, há mais idosos brancos vacinados que negros, proporcionalmente", refere a publicação.
Mais mulheres vacinadas e mais mortos na população negra
A investigação concluiu ainda que a quantidade de mulheres vacinadas é aproximadamente o dobro da de homens, tanto na população negra como na população branca.

Em relação aos mortos, a desigualdade entre brancos e negros mantém-se. A maior parte dos casos e das mortes por covid-19 ocorreu em negros, considerando os números absolutos.

No Brasil, a pandemia afetou brancos e negros de forma desigual e não apenas na vacinação. Os dados de mortalidade são bastante diferentes entre os dois grupos. Até mesmo os períodos com mais casos e mortes não foram os mesmos.

Mais de 89 mil pessoas negras morreram no Brasil devido à infeção pelo coronavírus, de um total de 260 mil casos confirmados. O número de mortes entre pessoas negras é cerca de 10 por cento superior ao número de mortes entre pessoas brancas.

Isto é, há 92 óbitos a cada 100 mil habitantes negros, e 88 a cada 100 mil brancos.

Esta diferença na taxa de mortalidade pode explicar-se, segundo a investigadora Emanuelle Góes, devido à maior frequência de comorbidades entre pessoas de populações negras.

"A população negra vai acumulando doenças crónicas em uma situação mais agravada, onde as pessoas não cuidam porque elas vivem em contextos mais difíceis", diz a investigadora.

De facto, números mostram que pessoas negras que foram internadas em unidades de cuidados intensivos morreram mais depressa do que pessoas brancas.

As diferenças entre brancos e negros existem até mesmo nos picos e tendência de crescimento da pandemia, recorda a Agência Pública.

"A quantidade de mortes de pessoas negras após quadros graves de problemas respiratórios está a aumentar desde o fim de 2020 — justamente quando houve o pico na população branca. A tendência é a inversa em pessoas brancas".
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