Cem anos depois de Outubro Putin enaltece czar e Estaline

por RTP
Reuters

Com a aproximação dos cem anos da Revolução de Outubro, a versão oficial promovida pelo presidente russo leva a cabo uma espargata ideológica que se diria a mais improvável: reabilitar, simultaneamente, a monarquia e o estalinismo. Mas existe uma lógica na linha adoptada por Putin.

Em artigo publicado na agência de notícias oficiosa Sputnik, o conhecido putinista Dmitry Babich polemiza contra a geração anterior de detractores da Revolução de Outubro. Essa geração, personificada para efeitos de polémica no jornalista norte-americano Nicholas Daniloff, defendia a Revolução de Fevereiro de 1917 e atribuía às Revolução de Outubro os males da História russa ulterior.
A "revolução boa" e a "revolução má"
Daniloff, hoje com 82 anos, neto de um general czarista, nascera no exílio francês do pai e do avô e emigrara para os Estados Unidos. Babich refere que a sua "visão em grande parte positiva sobre as intenções da Revolução de Fevereiro é partilhada [na Rússia] pelo partido pró-ocidental Yabloko, cujo dirigente Grigory Yavlinsky reclama a devolução da Crimeia à Ucrânia e encara a expansão da União Europeia até às fronteiras da Rússia como um fenómeno positivo".

O mesmo Babich cita Yavlinsky a afirmar: "As pessoas que subitamente se acharam no poder em Fevereiro de 1917 eram homens educados e honestos, não enganaram o seu país, não lhe roubaram as suas riquezas (...) Faltava-lhes apenas a experiência necessária para conduzir os assuntos do Estado. Essa experiência tinha-lhes sido negada pelo regime czarista autoritário".
Duas "revoluções más" e uma teoria da conspiração
Ora, como Babitch faz questão de referir, o decano do Departamento de História da Universidade Estatal de Moscovo, Vyacheslav Nikonov, considera que "as pessoas que detiveram o poder entre Fevereiro e Outubro de 1917 eram irresponsáveis e antipatrióticas. A primeira coisa que fizeram ao chegar ao poder foi liquidar o Departamento de Polícia do Ministério do Interior - um passo que levou a um rápido incremento do crime violento e do extremismo. Os velhos governadores czaristas foram todos demitidos ou mesmo detidos, sem serem dadas orientações claras sobre como os cidadãos haviam de eleger os novos governadores".

Nikonov considera que "não pode haver qualquer sentimento de orgulho pelos acontecimentos de Fevereiro e pela subsequente abdicação do czar Nicolau II. Pelo contrário, devemos recordar esses acontecimentos com um sentimento de pena ou mesmo de vergonha. O czar caíu vítima de uma conspiração elitista que não conseguiu impedir".

Um outro académico citado por Babitch, Boris Mironov, da Universidade Estatal de S. Petersburgo, procura contestar a velha explicação de que a revolução irrompeu porque "os de cima já não podiam e os de baixo já não queriam viver como antes".

Segundo Mironov, não havia na Rússia de 1917 nada de insuportável para as classes dominadas: "Não existe inevitabilidade nos acontecimentos de Fevereiro de 1917. A Rússia não estava em crise militar ou económica, a situação alimentar de S. Petersburgo não era boa, mas não era pior que a de Paris, que ao fim de contas não tinha revoluções".

Também segundo Mironov, "o calcanhar de Aquiles da Rússia era a opinião pública, que tinha sido cuidadosamente moldada pelos intelectuais radicais e irresponsáveis". Como exemplos dessa operação manipulatória da opinião pública, o autor refere a campanha contra o monge Grigori Rasputin e as suas simpatias pelo inimigo, que o levaram a insuflar à família real uma germanofilia no limiar da traição.

À teoria da conspiração dos intelectuais, tal como é formulada por Mironov, junta-se a teoria da modernização do país alegadamente iniciada sob a égide do czarismo e intempestivamente interrompida pela revolução. Esta teoria, tal como a de Tocqueville a respeito da Revolução Francesa, sustenta que a convulsão revolucionária era, afinal, supérflua e dispensável, porque a modernização teria ocorrido de qualquer modo, com menos sangue e em menos tempo.
Duas autocracias "boas"
Em posição diferente no espectro político, o liberal Andrei Kolesnikov escreve a denunciar a operação propagandística de Putin, que consiste em reabilitar ao mesmo tempo a autocracia czarista e a autocracia estalinista.

A explicação de Kolesnikov para este surpreendente ecletismo é a seguinte: "O presidente Vladimir Putin é a encarnação da nostalgia, não tanto dos tempos soviéticos, como do período de sacralização do Estado (...) A própria palavra 'revolução' é execrada pelas modernas elites russas".

A "narrativa imperial" que, segundo Kolesnikov, Putin acabará por adoptar abertamente consiste em afirmar que "Lenine era um génio do mal que destroçou o império russo no momento em que este florescia e transbordava de espiritualidade. Joseph Estaline reconstruiu depois o império, aparentemente com base no marxismo-leninismo, mas na verdade como base nos tradicionais valores russos conservadores".

E prossegue, descrevendo a narrativa putinista: "O degelo pós-estalinista de Nikita Khrushchev, quando se afrouxou a repressão e a censura, minou os valores fundamentais do império, levianamente entregando a Crimeia à Ucrânia. Mas, a partir do final de 1964, quando Khrushchev foi deposto, as coisas melhoraram, com os russos a viverem em sossego e felicidade. A queda da União Soviética, que redundou noutra dissolução do império, foi uma grande catástrofe geopolítica na história russa".

Para a interpretação putinista, tal como Kolesnikov a resume, há uma coisa comum entre as épocas de ouro da história russa: foram épocas em que o governo estava nas mãos de dirigentes com "punho de ferro", como "Ivan, o terrível" ou Estaline. Os degelos e as democratizações, ao invés, foram épocas de decadência.
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