Centenas de civis mortos em ataques aéreos sobre Mossul

por Cristina Sambado - RTP
Andrea DiCenzo - Amnistia Internacional

Centenas de civis foram mortos em ataques aéreos contra as suas casas ou locais onde procuraram abrigar-se dos combates em Mossul, denuncia a Amnistia Internacional. Isto depois de o Governo iraquiano ter aconselhado a população a permanecer na cidade durante a ofensiva para a resgatar ao autoproclamado Estado Islâmico.

A investigação feita pela Amnistia Internacional no Iraque, numa missão que decorreu em março, aponta para um padrão alarmante de bombardeamentos aéreos da coligação liderada pelos Estados Unidos, que destruíram por completo casas onde se abrigavam famílias inteiras.

O aumento drástico no número de mortes de civis nos meses recentes em Mossul, resultante tanto dos ataques aéreos da coligação militar como dos combates no terreno entre as forças iraquianas e o grupo armado Estado Islâmico, inspira também preocupações sérias sobre a legalidade das operações que estão a atingir as populações civis.

A Amnistia Internacional presenciou, a 17 de março, um dos ataques mais mortíferos. Cento e cinquenta pessoas morreram num ataque aéreo da coligação no bairro de Jadida, a oeste de Mossul.

“Ataques da coligação destruíram casas inteiras, com famílias no interior. As forças da coligação não conseguem tomar as devidas precauções para evitar a morte de civis, em flagrante delito do direito internacional humanitário”, afirmou Donatella Rovera da Amnistia Internacional.

Centenas de civis foram mortos em ataques aéreos contra as suas casas ou locais onde procuraram abrigar-se dos combates em Mossul, denuncia a Amnistia Internacional.


A responsável da Amnistia Internacional em Mossul considera que "o facto de as autoridades iraquianas aconselharem repetidamente os civis a permanecer em casa, em vez de fugir da área, indica que as forças da coligação devem saber que estes ataques eram propensos a resultar em um número significativo de vítimas civis”.

Para a Amnistia Internacional o falhanço em tomar medidas adequadas de proteção que previnam a morte de civis constitui uma flagrante violação da lei internacional humanitária.

“Os ataques desproporcionados e indiscriminados violam a lei internacional humanitária e podem constituir crimes de guerra”, acrescentou.

Donatella Rovera defende que “o Governo iraquiano e a coligação, liderada pelos Estados Unidos, devem lançar imediatamente uma investigação independente e imparcial sobre a morte de civis resultante da operação em Mossul”.
Os relatos na primeira pessoa
Para os moradores de Mossul, abandonar a cidade antes dos combates foi também extremamente difícil e muitas vezes os que tentavam fugir eram capturados pelo Estado Islâmico.

“Seguimos as instruções do Governo, que nos disse para ficar nas nossas casas. Segundo as instruções, quem não tinha nada a ver com o Daesh devia ficar. Ouvimos essas instruções na rádio e lemos em folhetos que foram atirados de aviões. É por isso que ficámos nas nossas casas”, afirmou Wa'ad Ahmad al-Tai, morador no bairro de Zahra, a oriente de Mossul.

Quando os combates se intensificaram, Wa'ad Ahmad al-Tai, um irmão e respetivas famílias procuraram abrigo em casa de outro familiar.

“Nós estávamos todos amontoados num quarto no fundo da casa. Éramos 18, três famílias. Mas quando a casa ao lado foi bombardeada desabou sobre nós. Meu filho Yusef, de nove anos, e a minha filha Marcela, de três anos, morreram juntamente com o meu irmão, a sua mulher, o filho de ambos de nove anos e a minha sobrinha que estava a carregar a filha de cinco meses”, contou à Amnistia Internacional.

Hind Amir Ahmad, uma mulher de 23 anos de idade, que perdeu 11 familiares, incluindo os pais, avós e quatro irmãos jovens, num ataque aéreo coligação no oriente de Mossul, a 13 de dezembro de 2016, descreveu à Amnistia Internacional o momento: “Estávamos a dormir quando a casa literalmente desabou sobre nós. Foi um milagre ninguém ter morrido. Nós corremos para casa do meu tio nas proximidades. No entanto, aquela casa também foi bombardeada e desabou sobre nós. Morreram 11 pessoas”.

“Meu primo, duas tias e eu fomos os únicos sobreviventes. (…) Não sei por que fomos bombardeados. Só sei que perdi todas as pessoas que eram mais queridas para mim”, acrescentou.

A 6 de janeiro de 2017, noutro ataque aéreo em Hayal – Mazaraa, leste de Mossul, 16 pessoas morreram. Entre as vítimas estavam três crianças.
Civis usados como escudos humanos
Em muitos dos casos investigados pela Amnistia Internacional, onde civis foram mortos em ataques aéreos da coligação moradores e vizinhos afirmaram que os combatentes do Estado Islâmico tinham estado presentes nas casas alvo dos ataques, geralmente no telhado ou no jardim. Em todos os casos os ataques aéreos destruíram casas inteiras.

“É vergonhoso usar civis como escudos humanos. É uma violação grave das leis da guerra e equivale a um crime de guerra. Numa área residência densamente povoada, os riscos para a população civil são enormes. No entanto, o uso de escudos humanos, por parte do Daesh, não absolve as forças iraquianas nem a coligação da sua obrigação de não lançar ataques tão desproporcionados”, sustentou Donatella Rovera.

Mohammed, um residente em Hay al Dhubbat, a leste de Mossul, que perdeu vários familiares num ataque aéreo da coligação, afirmou à Amnistia Internacional que “os militantes do Daesh estavam por toda a parte e não havia nada que pudéssemos fazer em relação a isso. Se os desafiássemos, eles matavam-nos. Andaram por esta área durante dois anos e agora (as forças governamentais e a coligação) estão a destruir as nossas casas, com as nossas famílias lá dentro, só para eliminar dois ou três militantes do Estado Islâmico?”.

A 5 de janeiro de 2017, cinco membros de uma família e um vizinho foram mortos ou feridos em três casas no leste de Hay al Salam, a leste de Mossul, que foram totalmente destruídas pelos ataques da coligação.

Os sobreviventes revelaram à Amnistia Internacional que os membros do Daesh estavam numa das casas, mas escaparam ilesos ao ataque. Foram mortos, mais tarde, pelas forças iraquianas.

Na'el Monica de Tawfiq, cujo filho de 23 anos foi morto no ataque, frisou à Amnistia Internacional que meses antes do ataque estavam cercados pelos combates, com os atiradores do Estado Islâmico nos telhados a disparar contra os soldados iraquianos.

“Não podíamos fazer nada, nós somos civis. Não podíamos parar o Daesh. Quando entraram em minha casa, pouco antes do ataque, tentei desafiá-los, para litigar com eles; - Disse-lhes, o que estão a fazer? Eu tenho uma família aqui. Eles deixaram, mas quando foram embora a casa foi bombardeada. O meu filho estava morto. A minha filha Bara' perdeu um olho”.

Donatella Rovera considera que “as forças iraquianas, em vez de retirar os civis das zonas recém-capturadas ao Daesh, de forma a minimizar o risco, parecem colocá-los ainda mais em perigo, encorajando-os a permanecer em casa”.

“Todas as partes do conflito devem abster-se de usar armas explosivas nos bairros densamente povoados. A população civil suportou o fardo da batalha para recapturar Mossul, com ambos os lados a exibirem uma arrepiante indiferença ao sofrimento causado aos civis da cidade”, remata o relatório da Amnistia Internacional.
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