Coligação de esquerda em França em "impasse" após semanas de tensão sobre Hamas

Uma nova união da esquerda francesa sem Jean-Luc Mélenchon está a consolidar-se, após semanas de tensão na coligação NUPES acentuadas por divergências sobre o caráter "terrorista" do movimento islamita Hamas, que culminaram no afastamento de socialistas e comunistas.

Lusa /

A não qualificação do Hamas como organização terrorista por Mélenchon, líder da França Insubmissa (LFI), após os ataques de 07 de outubro contra Israel, dividiu o seio da Nova União Ecológica e Social Popular (NUPES), já a viver tensões que tornavam cada vez mais difícil o entendimento nesta coligação que nas eleições legislativas de 2022 conseguiu eleger 131 deputados de esquerda.

Ainda em setembro, a deputada Sophia Chikirou da LFI, muito próxima de Mélenchon, tinha comparado o líder dos comunistas, Fabien Roussel, a Jacques Doriot, um colaboracionista que ajudou os alemães durante a ocupação nazi na Segunda Guerra Mundial, o que criou um desconforto entre insubmissos, comunistas, socialistas e ecologistas.

Bárbara Gomes, conselheira de Paris eleita pelo Partido Comunista, criticou em declarações à Lusa que "certas pessoas" na LFI tenham "mostrado que estavam mais preocupadas em instrumentalizar os discursos de Fabien Roussel e dos comunistas em geral, do que trabalhar na unidade e em ter um programa comum".

"O que se passou nas últimas semanas foi o culminar de uma série de episódios complexos. Como é que hoje temos pessoas que não conseguem qualificar o Hamas de organização terrorista, mas conseguem chamar os comunistas de nazis?", questionou Gomes.

No início desta semana, os socialistas decidiram implementar uma "moratória" à sua participação na NUPES, com os ecologistas a pedirem um encontro entre todos os deputados de forma a pensar no futuro da coligação. Os socialistas dizem-se dececionados com o comportamento de Mélenchon, mas querem criar uma nova união de esquerda.

"Seja qual for a nossa opinião sobre a NUPES, esperávamos uma reação unânime aos ataques do Hamas e o problema não é a NUPES, é Jean-Luc Mélenchon que quer sempre diferenciar-se. Houve uma grande deceção e temos todos consciência do que se está a passar, isto não pode ser o fim da coligação de esquerda porque sabemos muito bem o que se pode passar em 2027 e isso ninguém na esquerda quer", disse João Martins Pereira, membro do Conselho Nacional do Partido Socialista francês, favorável à moratória que teve 54% de votos a favor.

Para os comunistas, este é "um momento de reflexão", mas não deve ser o fim da coligação.

"Podemos dizer que é um momento de reflexão, nós queremos pensar melhor a maneira como responder a tudo que se passa e precisamos de alguma distância em relação à NUPES, porque não estava a funcionar corretamente. Há muito tempo que sabemos que o problema número um da NUPES é a atitude de certos dirigentes da LFI, que não permite trabalhar com esta força", indicou Bárbara Gomes.

Mas se nem socialistas, nem comunistas nem ecologistas anunciaram ainda o fim da NUPES, é também porque está em jogo a eleição presidencial de 2027, com muitos esquerdistas a acreditarem que, sem um candidato forte no seu campo, a via fica aberta para a extrema-direita e para Marine Le Pen. Assim, os partidos tentam apostar na refundação da coligação.

"O que estamos a propor é trabalhar com aqueles que dentro da LFI têm valores em comum connosco, o que passa também pela condenação do Hamas, até porque não é por acaso que é considerada uma organização terrorista pela União Europeia", disse João Martins Pereira, que é também eleito local em Charenton, perto de Paris.

"Os militantes percebem o facto de querermos trabalhar com todas as pessoas de boa vontade na esquerda, tal como já acontece em muitas cidades onde governamos juntos", adiantou à Lusa.

Para os comunistas, deve agora repensar-se a forma como a coligação trabalha em conjunto. Figuras como os deputados `insubmissos` François Ruffin ou Clementine Autain são referidas frequentemente como consensuais entre os partidos de esquerda e possíveis elos de ligação com outros partidos.

"Nós o que queremos é ter uma coligação política em que podemos trabalhar os pontos comuns - a maioria dos pontos dos nossos programas são convergentes - e colocar de lado os pontos divergentes", defendeu também Bárbara Gomes, que refere trabalhar de forma regular com as `insubmissas` Leila Chaibi ou Danielle Simonnet.

"Se dirigentes como Jean-Luc Melenchon aceitarem que dá para trabalhar de outra maneira, veremos. Claro que é complicado quando se chama um aliado de nazi... Mas trabalhamos muito bem com pessoas da LFI", adiantou.

No entanto, cabe agora à própria França Insubmissa decidir o que fazer face à sua liderança e à continuação da própria NUPES, algo difícil devido ao domínio de Mélenchon nesta força política.

"Por enquanto, dentro da LFI, ainda não se ouviu muito a oposição e eu acho que certos deputados não podem ficar calados internamente, porque senão vão ser marginalizados à esquerda", considerou João Martins Pereira.

Com os olhos postos em 2027, mas também já nas eleições europeias que decorrem daqui a oito meses e onde os partidos vão concorrer de forma separada, a esquerda quer ver resolvido este impasse, até porque sabe que em conjunto têm maior peso eleitoral.

"Estamos num impasse, mas queremos sublimar esta união. Eu acredito que não podemos ganhar sem um espaço coletivo à esquerda. Temos de trabalhar juntos, precisamos disso", concluiu Bárbara Gomes.

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