Começam escavações para exumar 796 bebés na República da Irlanda

Arqueólogos, antropólogos e outros especialistas forenses começam a escavar o que se pensa ser uma vala comum, no oeste irlandês, que guarda os restos mortais de 796 bebés. Estas crianças estavam a cargo de um lar de freiras, em Tuam, que acolheram mães grávidas entre 1925 e 1961. A operação deve durar dois anos e visa exumar todos os restos humanos, tentar identificá-los, devolvê-los às famílias para que sejam sepultados com dignidade, dizem os investigadores.

Carla Quirino - RTP /
Local onde se acredita localizar uma vala comum de crianças Paul Faith - AFP

Patrick Derrane tinha cinco meses e foi o primeiro bebé a morrer em 1925, no Lar das Crianças de Santa Maria, uma instituição administrada pela Igreja Católica. Mary Carty, com a mesma idade, foi a última criança a morrer, em 1960. A instituição fechou poucos meses depois, em 1961. 

Durante estes 36 anos, pelo menos mais 794 outras crianças também lá morreram. Os enterros foram silenciados e nunca foi feita qualquer identificação com lápide ou outro registo. Deverão estar depositados num tanque como se tratasse de uma vala comum.A história tem lugar em Tuam, no condado de Galway, no oeste da República da Irlanda.

O assunto já foi classificado como mancha na consciência da nação, pois aponta o dedo ao abuso e negligência de crianças em instituições religiosas e estatais, especialmente aquelas que sofriam ou sofrem do estigma de nascer fora do casamento.

A agência que realiza a operação é o Gabinete do Diretor de Intervenção Autorizada de Tuam (ODAIT): assumiu o controlo do local há quatro semanas para iniciar os trabalhos preparatórios.

É liderado por Daniel MacSweeney, que descreve a escavação como "única e incrivelmente complexa".
O número inesperado de 796
Em 2014, a historiadora irlandesa local Catherine Corless descobriu evidências de uma vala comum, num antigo tanque de esgoto, que se acredita conter centenas de bebés em Tuam.

Corless frequentava um curso de história local e decidiu escrever um ensaio sobre a antiga casa de freiras da ordem Bon Secours que tinha sido demolida em 1972 e substituída por uma área habitacional.
Em 1975, dois meninos brincavam perto dos escombros e depararam-se com ossos humanos numa antiga fossa séptica. As autoridades não realizaram nenhuma diligência na altura. Mais de 50 anos depois a investigadora amadora começou a fazer perguntas.

“Quando comecei não tinha ideia do que ia encontrar. Era um tipo de silêncio nas pessoas que se percebia que algo não estava certo” descreveu Corless à BBC. 

A historiadora, depois de pedir informações à Igreja Católica local e ao Conselho do Condado de Galway - sem sucesso nas respostas - encontrou finalmente quem a levou ao sítio onde estaria a fossa com os ossos. Era um antigo guarda do cemitério que conhecia bem a área e sabia da história dos meninos de 1975.

Ao comparar a localização nas plantas antigas encontrou uma estrutura designada por “tanque de esgoto” (Sewage Tank). De acordo com a investigação de Corless este tanque tinha sido desativado em 1937.

Planta do Lar de Crianças com a identificação do tanque de esgoto | Projeto ODAIT

A historiadora foi então ao gabinete dos registos de nascimentos, mortes e casamentos em Galway onde pediu os nomes e datas das mortes de todas as crianças que morreram na instituição de Santa Maria.

“Eu esperava 20 ou 30” mas havia centenas, sublinhou Catherine. O envio da lista trazia 796 nomes e as causas da morte.
"Estávamos isolados”

PJ Haverty relata que passou os primeiros seis anos nessa instituição a que chama “prisão”. Porém, considera-se um dos sortudos: "Eu saí de lá”.

Recorda-se como as "crianças" eram evitadas na escola.

“Tínhamos que esperar dez minutos ou sair mais cedo, porque eles não queriam que nós falássemos com as outras crianças”, descreve PJ.

“Mesmo no intervalo da escola, não tínhamos permissão para brincar com eles – estávamos isolados”, acrescenta. 

Haverty acabou por encontrar quem o adotasse e nos últimos anos procurou informação da mãe biológica. Soube que tinha sido separado dela no primeiro ano de vida.

Anna Corrigan, residente na região, pretende que a escavação venha a preencher este vazio na história local e pessoal. 

Isto porque até aos 50 anos Anna acreditava que era filha única. Mas, ao investigar a história familiar em 2012, encontrou dados referentes a dois meninos que nasceram em 1946 e 1950, John e William. Eram irmãos. A mãe Bridget Dolan deu à luz os rapazes e deixou-os em Santa Maria.

"Livro de descargas" do Lar Santa Maria com a referência ao irmão William | Clodagh Kilcoyne - Reuters

Anna não conseguiu encontrar uma certidão de óbito para William Joseph Dolan, apenas referência no livro de "descargas" da instituição que diz que morreu em 1951. Anna acredita que o seu irmão morreu de "negligência e desnutrição".

Para John existe uma certidão que reporta que o bebé morreu aos 16 meses. A causa de morte refere doença mental: "idiota congénito" (congenital idiot).
Que comece a escavação
Daniel MacSweeney já esteve envolvido em buscas de corpos em zonas de conflito e agora vai dirigir a escavação em Tuam. "É um processo muito desafiador, em primeiro lugar", sublinha.

Os restos mortais estão a cerca de dois metros abaixo da superfície e podem encontrar-se todos misturados. O investigador lembra que vão existir “fémures de bebés - o maior osso do corpo – com o tamanho do dedo de um adulto”.

"Os restos mortais são absolutamente pequenos", realça MacSweeney. “Precisamos de exumar os restos mortais com muito, muito cuidado para maximizar a possibilidade de identificação”, acrescenta.

Corless diz-se “muito, muito aliviada” com os inícios dos trabalhos de escavação e espera que os restos mortais das 796 crianças possam vir a ser identificados e reunidos.

Entretanto já foi constituído um banco de dados de ADN que 15 parentes e 35 outras pessoas se prontificaram a participar.

À espera estão muitos habitantes como a Anna que querem saber mais sobre os familiares que morreram precocemente e foram obliterados da vida e memória local.

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