Comida e apoio chega a milhares de deslocados em Chiúre, Faque só pensa no arroz para a mãe

Pelas 11:00 da manhã, Faque Mário recebe, na escola dos Coqueiros, Chiúre, arroz e feijão das agências humanitárias, a primeira comida em dias, após fugir com a mãe dos ataques de extremistas no sul de Cabo Delgado, Moçambique.

Lusa /

"Vou dar à mamã, está doente. Vai agradecer muito, porque está a sofrer", conta à Lusa Faque, 20 anos. Depois do ataque à aldeia, na quinta-feira, levou um dia a chegar de Chiúre Velho à sede distrital, ajudando a mãe e outros pelo caminho.

Escola Primária Completa (EPC) de Coqueiros, no bairro de Namissir, em Chiúre, recebeu um saco de 25 quilogramas (kg) de arroz, outro de 10 kg de feijão e dois litros de óleo, que o Programa Mundial Alimentar (PMA) começou a entregar a cada família ali deslocada, mediante registo prévio obrigatório, em filas que se formavam em vários pontos do recreio, entre brincadeiras das crianças, orientadas por elementos das várias agências das Nações Unidas que começaram a chegar ao local durante a manhã.

Só em Chíure, a onda de deslocados que se avoluma desde quinta-feira chega, segundo estimativas no terreno, a 3.500 famílias, distribuídas por casas de familiares, mas sobretudo por dois centros temporários em duas escolas da vila, esta semana sem aulas.

Enquanto carrega o arroz e o feijão à cabeça, que vai também servir para alimentar os irmãos que já chegaram à vila, Faque Mário faz contas à vida: "Com esta situação, vamos aguentar um mês, dois meses".

Elementos associados ao grupo extremista Estado Islâmico reivindicaram um ataque, na quinta-feira, ao posto policial de Chiúre Velho, no sul da província de Cabo Delgado, com armas automáticas, levando material do seu interior.

A reivindicação, feita através dos canais de propaganda do Estado Islâmico (EI), é documentada com um vídeo, em que os rebeldes, alegadamente pertencentes ao grupo Ahlu-Sunnah wal Jama`a (ASWJ), surgem a disparar rajadas de tiros de metralhadora e entram naquele posto policial, garantindo ter levado material, após queimarem uma viatura e "libertarem presos muçulmanos", com registo de pelo menos uma pessoa decapitada no centro da localidade.

Em Chiúre Velho, como todos os seus vizinhos, Faque Mário deixou tudo o que tem, sobretudo a mandioca, feijão e ervilha das machambas, os campos de produção de agrícola, por estes dias alvo principal dos terroristas, que associam os ataques aos saques dos bens da população.

"Toda a comida deixei no mato, durmo aqui no chão, atrás da mangueira", desabafa, antes de seguir viagem, carregado de comida para umas semanas.

As mesmas contas são feitas por Pascoal Francisco, 25 anos, desde quinta-feira abrigado na escola, com dez pessoas da família, incluindo os três filhos, mãe, sogros e o avô: "Essa, vai servir durante esta semana. Pode ser duas semanas, vai ser muito".

Todos partiram, a pé, pela mata, depois do ataque a Chiúre Velho, apenas com a roupa do corpo, pela segunda vez em pouco mais de um ano, tal como na incursão terrorista de março de 2024.

"Deixei a comida lá na machamba, viemos para aqui. Recebemos este arroz, para comermos", desabafa, recordando o dia do último ataque: "Entraram de repente, não trouxemos nada. A nossa riqueza está na machamba".

Voltar a casa está nos planos, mas não é para já: "Não sei. Se esses gatunos voltaram para a casa deles, vamos sair para lá".

Oficialmente, agências no terreno contabilizaram até agora, mais de 34.000 novos deslocados só entre 20 e 25 de julho, devido a novos ataques insurgentes, nos distritos de Chiúre, Ancuabe e Muidumbe.

Com os três camiões carregados de apoio humanitário parados no recreio da escola desde as 09:30 locais (08:30 em Lisboa), trabalhadores da agências humanitárias, além do PMA também da Organização Internacional da Migrações (OIM) ou do Unicef, percorrem o espaço, onde se estima estare já 1.900 famílias, organizando a distribuição, enquanto voluntários juntam as crianças em rodas, a cantar e a brincar, tentado fazer o tempo passar.

Da OIM cada família recebe lonas, um `kit` de cozinha, rede mosquiteira e uma manta, e do Unicef baldes, barras de sabão, capulanas, calças e pensos. Ao lado, nas salas antes ocupadas por alunos e professores, profissionais de saúde tratam mães e recem-nascidos, alguns sem apoio médico há semanas.

Aos 60 anos, pela segunda vez, Carlos Mendes fez-se à estrada, a pé, com a mulher e os filhos, fugindo, dia e noite, da aldeia de Natuco para Chiúre, onde chegou há dois dias. Hoje recebeu finalmente comida e outro apoio para a família.

"Recebi estes baldes, com arroz, esteiras, muito obrigado", repetia, sublinhando as crianças que esperam para comer na sua tenda improvisada no recreio.

"Não sei, pelo menos uma semana há-de chegar. Agradeço muito bem, porque deixamos lá [na aldeia] ervilha, mandioca, milho (...) Esse milho não sei se comeram ou não [os terroristas que atacaram], porque tem muitos ladrões aí", dizia, assumindo: "Hei de voltar, o que fazer. Lá tenho bananeiras, minha machamba e cajueiros, cana de açúcar".

Apesar do sofrimento, o alívio é por não ter perdido ninguém, no ataque nem na caminhada, como tantas outras famílias que fizeram o mesmo.

"No ano passado fugimos todos para aqui, mas já tínhamos voltado para casa. Esta é a segunda vez", desabafa, antes de voltar à família, com a boa nova da comida.

Tópicos
PUB