Confrontos entre cristãos e forças de segurança incendeiam o Cairo

As mortes de mais de duas dezenas de pessoas em confrontos entre cristãos coptas e forças de segurança, no coração do Cairo, estão a inflamar a mais grave vaga de violência vivida pelo Egito desde o colapso do regime de Hosni Mubarak. Perante um cada vez mais provável passo atrás na revolução, o primeiro-ministro egípcio, Essam Sharaf, desdobra-se em apelos à calma. O Conselho Militar, que continua a manter em mãos o poder, encarregou esta segunda-feira o Governo de conduzir um inquérito sobre os acontecimentos das últimas horas.

RTP /

A violência voltou a tomar conta do Cairo no domingo. Milhares de cristãos coptas desfilaram entre o distrito de Shubra e as instalações da televisão estatal, na Praça Maspero. A marcha, organizada como forma de protesto contra o ataque da semana passada a uma igreja em Assuão, no sul, acabaria por alastrar à Praça Tahrir. E foi no epicentro das manifestações que conduziram ao afastamento de Hosni Mubarak que manifestantes e forças de ordem se envolveram numa batalha.Tensões sectárias

É num quase vazio de autoridade política que se encontra o Egito pós-Mubarak. Uma situação que tem alimentado as tensões sectárias naquele país.

Entre a comunidade cristã, que representa cerca de dez por cento da população egípcia, cresce a preocupação face a uma aparente ascensão política e a sucessivas demonstrações de força dos círculos ultraconservadores do islamismo.

Os coptas queixam-se sobretudo de discriminação: um dos exemplos mais citados é a lei que faz depender a construção de igrejas cristãs de uma autorização presidencial, a que se junta o facto de o Egito reconhecer apenas conversões do Cristianismo para o Islão.


Morreram pelo menos 24 pessoas e outras 212 ficaram feridas, entre as quais 86 efetivos das forças de segurança, segundo um balanço do Ministério da Saúde do Egito. Testemunhas citadas na edição on-line da BBC descrevem um quadro de terror. Sandra, uma cristã ouvida pela emissora britânica, diz ter visto tanques do Exército “a passar por cima de pessoas”.

Outra testemunha, identificada como Nazly Hussein, afirmou que já não via tantos mortos nas ruas desde os dias mais violentos da revolução, entre 28 de janeiro e 2 de fevereiro.

Num contacto com a Antena 1, Samir, um jovem egípcio que assistiu ao desenrolar dos acontecimentos no Cairo, considerou também tratar-se do “incidente mais grave desde a queda do regime de Mubarak”: “Foi horrível o que aconteceu ontem. Eu vi os carros das Forças Armadas a atropelarem pessoas, os manifestantes, em frente da televisão egípcia”.

“Agora voltámos atrás, voltámos muito atrás depois de termos atingido um grau de estabilidade. Está muito difícil e ninguém sabe o que vai acontecer agora, se vai haver mais confrontos, se vai haver mais atos de violência. Aqui está tudo muito tenso”, acrescentou Samir à rádio pública.

“O caos e a sedição”

Para já, as autoridades mantêm-se em silêncio sobre as denúncias de veículos militares a atropelarem manifestantes. E os relatos são confusos. Correspondentes internacionais dizem ter visto muitos muçulmanos a saírem às ruas para ajudar cristãos nos confrontos. Outros terão atacado ambos os lados. Ao mesmo tempo, alguns manifestantes cristãos garantem ter sido agredidos por homens vestidos à civil antes da intervenção dos militares. Foram ainda ouvidas palavras de ordem contra o Conselho Militar, nomeadamente o seu responsável máximo, o marechal de campo Mohamed Tantawi.

Na sequência de um recolher obrigatório que vigorou até às 7h00 (5h00 em Lisboa), o primeiro-ministro egípcio, o rosto de uma frágil transição política, convocou uma reunião extraordinária do Governo. Essam Sharaf recorreu à televisão do Estado para fazer uma série de apelos à calma. Mas também para avisar que “a ameaça mais séria à segurança do país é adulterar a unidade nacional e promover a discórdia entre muçulmanos e cristãos filhos do Egito”.

“O que está a acontecer não são confrontos entre muçulmanos e cristãos. São tentativas de provocar o caos e a sedição”, acrescentaria Sharaf na sua página do Facebook. Em declarações citadas pela agência Mena, o chefe do Executivo ter-se-á ainda queixado de “uma conspiração para manter o Egito afastado das eleições” previstas para o final de novembro.

Entretanto, a cúpula do Exército, que dirige o país desde fevereiro, já incumbiu o Executivo da abertura de um inquérito “para determinar o que se passou e tomar medidas legais contra quaisquer pessoas cuja implicação nos acontecimentos seja provada, seja por participação ou incitação”.

“Infiltrados”
Em Maio, ataques a igrejas coptas causaram 12 mortes. Dois meses antes, confrontos entre muçulmanos e cristãos na Praça Tahrir haviam provocado outros 13 mortos. O patriarca da Igreja Copta Ortodoxa, Shenouda III, atribui os atos de violência do fim de semana a “desconhecidos” que se terão “infiltrado na manifestação e cometeram os crimes que estão a ser imputados aos coptas”.

Entre as capitais europeias, aumenta a inquietação com as notícias que saem do Egito. É o caso do ministro alemão dos Negócios Estrangeiros. À chegada ao Luxemburgo, para uma reunião com os homólogos da União Europeia, Guido Westerwelle lamentou “uma situação” que a comunidade internacional “não pode aceitar”.

Na mesma ocasião, o chefe da diplomacia britânica, William Hague, manifestou-se “muito preocupado e alarmado”, ao passo que a alta representante da União Europeia para as Relações Externas e Política de Segurança, Catherine Ashton, sublinhou que a liberdade de culto é um valor “absolutamente fundamental”.

Já o ministro italiano dos Negócios Estrangeiros condenou a violência em território egípcio e exortou os países europeus e avançarem para “uma condenação unânime”. Franco Frattini lamentou ainda o que descreveu como “um êxodo” de cristãos do Egito: “Não sei se o número de dez mil é verdadeiro, mas é um número enorme”.
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