Coreia do Norte. Trump “não vai poder contar com a ajuda da China”

Em entrevista à Antena 1 para o programa Visão Global, o investigador Paul French sustenta que a questão da Coreia do Norte não será resolvida com a ajuda de Pequim enquanto perdurar a atual guerra comercial que envolve China e Estados Unidos. No livro “Coreia do Norte: Estado de Paranoia”, o autor e investigador explora as origens da ideologia que sustenta o regime eremita e aponta culpas à Administração Obama pela crise nuclear dos últimos anos.

Cerca de um mês após a cimeira de Hanói, em que não foi possível chegar a qualquer acordo entre Kim Jong-un e o Presidente norte-americano, Donald Trump, responsáveis de informações sul-coreanos confirmavam em março que Kim Yong-chol, alto representante da diplomacia norte-coreana, tinha sido castigado pelo fracasso nas negociações. Na altura, a imprensa de Seul conjeturou sobre o destino do dignatário, assumindo que tinha sido enviado para um campo de trabalho.

Esta semana, para surpresa de todos, Kim Yong-chol surgia perto de Kim Jong-un, o líder supremo da Coreia do Norte, durante uma apresentação dos oficiais do Exército, segundo imagens que foram divulgadas por publicações norte-coreanas.

É sempre assim quando o assunto em cima da mesa é o que se passa acima do Paralelo 38. Especulação, observação exaustiva – a que é possível -, tentativa e erro. Paul French, investigador e autor de vários livros sobre a história contemporânea da China, vive em Xangai há várias décadas, e lança agora um livro em que aborda as características e as particularidades de um país tão único quanto secreto.

Em “Coreia do Norte: Estado de Paranoia”, editado em Portugal pela Saída de Emergência, French explora os elementos que distinguem o regime e a sociedade norte-coreana, desde a ideologia, o estado da economia, a diplomacia e a questão nuclear, ou ainda as possibilidades de uma eventual reunificação entre as Coreias.

Um dos temas desta entrevista à Antena 1 - durante uma visita do autor a Portugal, no início de junho, - foi a própria dificuldade que existe em conhecer a Coreia do Norte. Perante todas as barreiras e entraves que se encontra quando se tenta conhecer um dos países mais fechados e instáveis do mundo, Paul French argumenta que é um esforço necessário: afinal, Pyongyang tem poder nuclear.


Um dos primeiros aspetos mencionados no seu livro é relativo às grandes dificuldades em aceder a informação credível sobre a Coreia do Norte. Porque é que isso acontece? Isso contribui para a “paranoia” e o fascínio com o país?

Sim. A Coreia do Norte é paranoica, ela própria. Toda a gente está paranoica em relação a toda a gente. O Governo está paranoico em relação ao povo e em relação ao mundo inteiro. Particularmente em relação aos Estados Unidos, à Coreia do Sul e ao Japão, porque pensam que querem destruir o país. Por isso, todas as estatísticas – quando se reúnem estatísticas – não devem ser confiáveis. Se as estatísticas são más – que serão, se tiverem que ver com alimentação ou a economia – o Querido Líder, Kim Jong-un neste momento, não quererá necessariamente ouvir falar delas.

Este é um Estado que é um segredo para o resto do mundo. A Coreia do Norte continua a não querer admitir que não consegue alimentar a sua população, ainda que dependa das Nações Unidas e da China para conseguir alimentação. Não podemos confiar em dados estatísticos. Também não podíamos confiar nas estatísticas em nenhum dos países comunistas e da União Soviética. Também não podemos confiar em todas as estatísticas que nos chegam da China. Os países têm muitas razões para mentir sobre estatísticas, a Coreia do Norte mais que qualquer outro.

Há outras coisas que podemos depreender, por exemplo, através observação de imagens de satélite, vendo, por exemplo, as manchas de luz elétrica no território à noite, ou quanto petróleo utilizam, quanto gás utilizam, a quantidade de gado que existe nas quintas, quantos carros circulam nas estradas. Mas claro, comparando com qualquer outro país do mundo, sabemos muito pouco com 100 por cento de certezas.
“Se alguém diz que sabe exatamente o que se passa, então está a mentir”
Como refere no livro, é difícil para alguém poder dizer que é um especialista em assuntos da Coreia do Norte devido à enorme opacidade e secretismo do país. É possível confiar completamente em alguma das fontes, seja um individuo, Estado ou organização? Existe alguma forma de obter informações objetivas e imparciais? Qual foi o seu critério para este livro?

Bom, eu oiço o que toda a gente tem a dizer e depois tento verificar o melhor que consigo. Basicamente, se alguém me diz que sabe exatamente o que se passa na Coreia do Norte, mesmo que seja alguém da Coreia do Norte, então está a mentir. Os norte-coreanos não falam sobre nada e eles próprios podem nem sequer saber o que se passa. A Coreia do Norte é um país muito compartimentado, mesmo alguém que esteja num departamento do Governo pode não saber o que se passa noutro departamento do Governo. É completamente impossível de saber.

Por exemplo, quando olhamos para a cimeira entre Kim Jong-un e Donald Trump, sabemos que Kim estava muito bem preparado percebia muito bem os Estados Unidos, o modo de funcionamento do país, o papel do Departamento de Estado, do Exército, e por aí em diante.

Mas nós não fazemos ideia de quem é o “John Bolton” de Kim Jong-un, quem realmente está a aconselhá-lo. Há vários candidatos para os quais podemos olhar, mas não teríamos a certeza. Sabemos disto porque, quando Kim Jong-un decidiu, de repente, matar o seu tio, que tinha sido um dos seus conselheiros mais próximos, não tínhamos qualquer ideia de que isso poderia acontecer. Não sabíamos se havia alguma animosidade entre eles. Não fazemos ideia das lutas e manobras políticas que têm lugar no país.

Se alguém disser que sabe o que se passa, alguém que esteja na Coreia do Sul e que pensa que sabe um pouco mais do que nós, ou alguém dos serviços secretos, não está a dizer a verdade. Só podermos tentar adivinhar, tentar perceber o que se passa por exemplo com o estudo de todas as fotografias para ver quem se senta ao lado de Kim Jong-un, ou vendo quem está autorizado a escrever para os jornais, quem é citado nas notícias na televisão.

Mas estamos sempre a especular para tentar perceber. Temos de nos agarrar ao que temos para tentar perceber o país, sobretudo agora, que eles têm armas nucleares. Temos de trabalhar com o que temos.


Não é difícil comparar a Coreia do Norte a um Estado orwelliano em vários aspetos. Existe uma enorme autocensura e mesmo a história do país é modificada pelo regime. Qual é o papel da ideologia na Coreia do Norte? As ideias do Confucionismo ajudam a manter o status-quo? E o “Juche”, a ideologia que é quase uma religião no país, como é que ajuda à manutenção do regime?

O que eles fizeram é muito interessante. Esta é uma realidade assustadoramente parecida ao livro de Orwell, 1984. Tendo em conta que a Coreia do Norte foi criada quase dez anos depois de Orwell ter escrito o 1984, é quase como se tivessem lido o livro e pensassem: isto era uma boa ideia, vamos fazer isto!

A ideologia Juche é muito interessante. Claro que a Coreia do Norte começou por se basear no modelo da União Soviética, a URSS de Estaline, com uma economia de comando muito rígida. Quando Estaline morreu e Nikita Khrushchev chegou ao poder tivemos uma destalinização, mas os norte-coreanos decidiram ficar na mesma. Quiseram tornar-se autossuficientes. “Juche” significa precisamente ser autossuficiente, não precisar de mais ninguém. O que é irónico, porque dependem de outros países para garantir a própria alimentação.

A ideologia foi construída com base no marxismo-leninismo da Rússia de Estaline, colocando o Exército no topo, os “militares primeiro” (Songun em coreano). Isso significa que os militares têm as posições mais altas na sociedade. Isso nunca tinha acontecido. Mas foi uma forma de a família de Kim manter o apoio do Exército, até porque a maior ameaça à sua liderança é a de um golpe de Estado dentro do Exército contra ele.

O que também fizeram foi um aproveitamento de vários elementos de uma sociedade confucionista tradicional. O confucionismo é uma ideia muito forte na Coreia há muitos anos e é praticado também no Japão, Coreia do Sul e China. É uma linha de pensamento muito útil se quisermos ter uma ditadura porque se baseia sobretudo em hierarquias: do filho para o pai, da mulher para o marido, sempre subindo até ao líder da nação. Toda a nação torna-se numa pessoa e deve dar-se toda a fidelidade e obedecer inquestionavelmente ao pai eterno, ao querido líder, - primeiro Kim Il-sung, Kim Jong-il e depois Kim Jong-un -, e isso foi algo que ficou consagrado na teoria Juche.

O resultado natural dessa influência foi a criação de algo nunca antes visto: uma monarquia comunista. O avô entrega o poder ao filho, e depois ao neto. Isto nunca tinha acontecido num país comunista.

“A economia da Coreia do Norte colapsou” 

A ideologia Juche é aplicada em todos os aspetos da vida na Coreia do Norte e a economia não é exceção. Qual é que foi o resultado desta economia autossuficiente durante as ultimas décadas?

Basicamente, o que aconteceu foi que pegaram na economia de comando na Rússia e também - de forma desastrosa - na agricultura coletiva, em que toda a gente trabalha numa quinta, não para si próprios, mas para que o Governo recolha todos os alimentos, algo que tem sido desastroso.

A Coreia do Norte tem sido capaz de seguir em frente por muito mais tempo do que seria provável, porque os russos enviavam petróleo, dinheiro, e deram ao Exército norte-coreano meios de combate. Em 1990, com o colapso da União Soviética, tudo isto parou por completo. Quando a União Soviética colapsou, a economia da Coreia do Norte colapsou.

Mesmo assim, eles não mudaram. Eles não imitaram o que a China fez após a morte de Mao, com a introdução de elementos de uma economia de mercado, como fez Deng Xiaoping. Isso foi algo que mudou por completo a China e criou este poder económico que conhecemos hoje.

A Coreia do Norte continuou com uma versão de 1990 do estalinismo. Mas o problema para a Coreia do Norte é que não tem reservas naturais. Tem algum carvão, mas não tem petróleo nem gás. Sem estes inputs básicos de energia, a economia caiu em espiral. A meio dos anos 90, apenas seis ou sete anos após o colapso da União Soviética, o país já estava em situação de fome, uma fome que pode ter matado até 10 por cento da população.

Mas o partido sobreviveu e Kim Jong-il assumiu o poder após o maior teste para a economia. Até hoje, o regime conseguiu sobreviver, ainda que a situação não tenha melhorado muito desde então.

Durante os anos 90, a Coreia do Norte teve de admitir que precisava de alimentação das organizações não-governamentais, das Nações Unidas. Tiveram de aceitar alimentos cedidos por velhos inimigos, os Estados Unidos e o Japão.

Até mesmo a ajuda que vem do Japão, por exemplo, é percecionada como uma compensação pela ocupação.

Sim. Qualquer ajuda que vem do Japão é apresentada aos norte-americanos como reparação e compensação pelo período colonial, entre 1911 e 1945. E por exemplo, quando a ajuda chega da América, há sacos de arroz que chegam com a bandeira dos Estados Unidos e dizem: “Prenda do Povo norte-americano”. Isto foi um pouco mais difícil de explicar, mas eles disseram que eram compensações dos EUA pela destruição de Pyongyang e da Coreia do Norte durante a guerra da Coreia, nos anos 50.

Mas essa ajuda do Japão e dos Estados Unidos, por exemplo, não está a chegar ao país neste momento, e as Nações Unidas afirmam que têm menos de 50 por cento do dinheiro necessário para a ajuda ao país.

Ora, esse dinheiro é dado por todos nós. É dado por Portugal, por todos os países. Tenho a certeza que grande parte das pessoas considera há outros casos no mundo que precisam de ajuda e que são mais merecedores do que a Coreia do Norte neste momento. A Coreia do Norte não é um bom caso de caridade. Mas isso significa que existe grande escassez de alimentos neste momento.

Essa caridade de que fala muitas vezes serve para ajudar um regime que não é bem visto pelo mundo.

Por isso é que agora temos as sanções das Nações Unidas. Mas isto é parte do problema. Certo, não gostamos de Kim Jong-un e sabemos que existe um problema massivo com os Direitos Humanos, que há milhares de pessoas em muito más condições nos campos de trabalho, que não existe imprensa livre nem liberdade religiosa… Mas devemos punir coletivamente toda a população na Coreia do Norte? Como democracias liberais, vamos dizer que, por não gostarmos do sujeito que manda no país, vamos deixar que toda esta gente, que não escolheu onde nasceu, morrer à fome?

Tivemos situações em África e noutros continentes onde não gostávamos dos líderes, sabíamos que as razões pelas quais havia fome não eram naturais, eram provocadas pelo homem, mas ainda assim tentámos ajudar as pessoas que passavam fome.

Com a Coreia do Norte temos outros problemas: gostaríamos de seguir o caminho da ajuda que é dada e garantir que chega a quem mais precisa, e não apenas ao Exército, à elite do país. Mas neste caso não é possível rastrear a ajuda que é fornecida.

Fosso entre Coreias “aprofundou-se imenso”
As Coreias estão separadas desde o fim da II Guerra Mundial e cresceram em direções opostas. Existe alguma possibilidade de reunificação? Podemos esperar uma nova “Política do Sol”, em que os líderes tentem realmente unir as duas nações?

Há 20 anos, pessoas como eu estavam a ir a conferências para ouvir falar sobre a experiência alemã da reunificação, que é a comparação óbvia que temos de fazer. Mas mesmo naquela altura, e definitivamente nos 20 anos seguintes, o fosso entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte aprofundou-se imenso. A economia do Norte colapsou, as pessoas estão esfomeadas e é uma sociedade muito fechada, enquanto a Coreia do Sul é uma das maiores economias do mundo, em termos de riqueza e produção industrial, mas também em soft power: os filmes, os programas de TV, a tecnologia, a internet… É uma das economias mais abertas do mundo e tem uma democracia plena.

É muito difícil ver como é que os dois países poderiam reunificar-se à maneira simples alemã, de deitar um muro abaixo e deixar que as coisas aconteçam. Acho que quando falamos de reunificação, no que as pessoas pensam, embora não o digam publicamente, é numa reunificação em que não existe Kim, mas outra pessoa na Coreia do Norte a liderar o país, uma reunificação em que continua a existir a zona desmilitarizada (DMZ) e as fronteiras, e depois existe um esforço concertado de colocar dinheiro, competências e investimentos no Norte, de forma a levar as pessoas a alcançar outro nível de vida.

De qualquer outra forma que não esta, teríamos uma situação de crime organizado a chegar do Norte e pessoas desesperadas a quererem entrar no Sul. Ou então teremos uma situação em que as pessoas do Sul procurarão a Coreia do Norte e a população como uma força de trabalho escravo, em locais sem saúde e condições de segurança. Nenhuma dessas situações seria positiva.

A reunificação é algo que continua na agenda, mas de uma forma muito diferente do que se pensa. Há muito trabalho ainda por fazer e temos de nos lembrar que não se trata apenas da economia, porque uma tem muito sucesso e a outra não. É também, por exemplo, a esperança média de vida, que é muito inferior na Coreia do Norte, hoje em dia. Os norte-coreanos são mais baixos, têm uma saúde e longevidade menores.

Também existem grandes diferenças na linguagem. A língua da Coreia do Norte permaneceu quase a mesma que a de 1940, enquanto a língua na Coreia do Sul está cheia de calão, termos técnicos, palavras modernas que não existem no Norte. Para mim é como ver um filme inglês dos anos 30 e farto de me rir com os sotaques das pessoas.

Houve muitos problemas na Alemanha quando houve a reunificação, até mesmo políticos. A reunificação gerou muita fúria e descontentamento entre as pessoas, sobretudo os desempregados. A política ficou muito perversa e isso também poderia acontecer na Coreia.

Uma reunificação entendida como todos os coreanos se juntarem e fazerem uma grande festa e serem todos amigos outra vez, lamento mas isso não é possível. A ideia que a Coreia do Norte pode livrar-se de Kim e na semana seguinte tornar-se uma democracia liberal como a portuguesa, por exemplo, não é de todo possível.
Obama e a “paciência estratégica” na origem da crise

No seu livro refere várias vezes que os assuntos que envolvem a Coreia não são uma prioridade para a política externa norte-americana. Qual é o impacto de estar sempre em segundo plano?

A questão da Coreia foi importante para a América durante muito tempo, mas não é o mais importante. Num certo sentido, lamento a situação herdada por Donald Trump, apesar de saber que não é algo que muita gente diga sobre Trump. Quando tivemos Bill Clinton na presidência foi feito muito trabalho sobre a Coreia do Norte. Isso não lhe deu necessariamente muitos votos, mas foi positivo. Só que depois George Bush seguiu pela direção oposta, toda a gente se lembra do discurso do “Eixo do Mal”: Irão e Iraque, a que se acrescentou a Coreia do Norte. Isso não ajudou.

Depois tivemos Obama. Para muitos de nós, Obama foi um bom Presidente, mas na situação da Coreia foi muito mau. Ele não queria falar sobre o assunto. Tinha uma estratégia a que chamou “paciência estratégica”, mas o que isso basicamente queria dizer era não fazer nada. Ele sabia que se fizesse alguma coisa sobre a Coreia do Norte e fosse desastroso, ou mesmo se fosse um sucesso, isso não lhe garantiria um só voto na América. Ninguém vota na América com base na política para a Coreia do Norte.

O que aconteceu durante esse tempo foi que a Coreia do Norte conseguiu desenvolver uma bomba atómica nessa altura e ficou também muito próxima de conseguir disparar um míssil nuclear. Por isso, quem quer que ganhasse a última eleição, fosse Hillary Clinton ou Donald Trump, iria herdar sempre um problema.

Mas este não foi um problema criado por Trump. Ele pode não estar a agir de forma correta, e pode estar até a piorar as coisas em vez de as melhorar, mas quem quer que fosse o Presidente iria ter de lidar com este problema porque nada foi feito em relação à Coreia do Norte durante os dois mandatos de Obama.
“Podemos ser como Kate e William” 

Kim Jong-un é o líder da Coreia do Norte há alguns anos. Qual tem sido o impacto da sua liderança, sobretudo na perceção que o mundo tem daquele país?

Tem sido muito interessante. Devemos lembrar-nos que não estávamos à espera que fosse ele a chegar ao poder. Esperávamos que fosse o irmão mais velho, Kim Jong-nam, que caiu em desgraça e não pôde assumir o poder. Foi viver para Macau e foi assassinado em fevereiro de 2017, no aeroporto de Kuala Lumpur, na Malásia. O segundo irmão na linha de sucessão não era considerado muito bom… então acabou por ser Kim Jong-un, que era bastante novo. Quando chegou ao poder era muito fácil – devido ao corte de cabelo, devido a algum excesso de peso - fazer pouco e rir de Kim Jong-un. Era alvo de muitas piadas.

No entanto, tem sido bastante interessante ver o que ele está a fazer. Primeiro, teve de ganhar a confiança do Exército e para isso perseguiu muita gente no Exército e no Politburo, com execuções, incluindo a do seu próprio tio. Depois, conseguiu as armas nucleares, fez o que a família Kim sempre disse que faria: fez da Coreia do Norte um poder nuclear.

Para além disso, Kim Jong-un conseguiu levar Donald Trump a ir até Singapura e depois até Hanói. Independentemente do que aconteceu nas cimeiras, Kim conseguiu uma fotografia de um ditador norte-coreano ao lado de um Presidente norte-americano, e ninguém pensava que isso poderia acontecer. Claro que Donald Trump dá ouvidos a ninguém, mas ninguém aconselharia um Presidente norte-americano a aparecer ao lado de um ditador norte-coreano, é uma ideia insensata, que desvaloriza a presidência norte-americana.

Houve outra coisa que Kim Jong-un fez na Coreia do Norte: conseguiu ligar-se aos jovens. Os jovens na Coreia do Norte tinham sido sempre ignorados, nem sequer havia uma noção de adolescência. Era como o mundo antes da II Guerra Mundial. Havia apenas adultos mais novos, em que as pessoas eram simplesmente mais novas mas vestiam-se como os seus país.

Através de vários aspetos, como a sua amizade com Dennis Rodman, o jogador de basquetebol, mas também ao ir a concertos Pop, ao casar com uma estrela da Pop, ao ser fotografado com o seu bebé… é quase como se tivesse olhado para o Reino Unido e para a família real e pensasse: nós podemos ser como Kate e William, como Harry e Megan. É claro que toda a gente continua a adorar a família real inglesa.

Kim Jong-un vai a várias escolas, fala muito com os mais novos. Isso nunca aconteceu antes. Pode nem parecer uma grande mudança, mas é uma grande mudança dentro da Coreia do Norte. Assim que ele conseguiu as armas nucleares, quis avançar para a segunda vertente da sua teoria de desenvolvimento paralelo, com a melhoria da vida das pessoas, com mais bens de consumo e alimentação. Mas neste momento não pode fazer isso, devido às sanções das Nações Unidas, e também devido à impossibilidade de fazer negócios com o resto do mundo.

Isso significa que, no futuro, Kim terá de assinar um acordo sobre as armas nucleares. Ainda que a segunda cimeira, a cimeira de Hanói, tenha sido um desastre, provavelmente vamos ter uma terceira cimeira para que se tente alcançar algo de mais construtivo.

“Pode ser um novo desastre como Chernobyl” 

Precisamente sobre a questão nuclear. Nos últimos anos, quando falamos da Coreia do Norte é inevitável falarmos do poder nuclear do país. Qual é o papel destas armas para a sobrevivência do regime? O poder de dissuasão pode durar muito mais tempo?

Quando falamos de armas nucleares não devemos pensar que Kim Jong-un e a Coreia do Norte têm estas armas para disparar para Seul ou Tóquio. São uma moeda de troca nas negociações, é algo a que podem recorrer. A Coreia do Norte precisa de alimentação, precisa do levantamento de sanções. A única coisa que tem em mãos - e com a qual toda a gente está preocupada, desde a China, aos Estados Unidos, Japão, à Coreia do Sul - são as armas nucleares.

Kim Jong-un pode vir a concordar com um congelamento do poderio nuclear, pode até admitir que sejam feitas inspeções de verificação do reator de Yongbyon, sobre o qual estamos todos preocupados, sobretudo os chineses. Ninguém conhece as instalações, nunca ninguém esteve lá, pode ser um novo desastre de Chernobyl prestes a acontecer, não sabemos. Precisamos de olhar para as armas que têm, precisamos de um congelamento do programa ou quiçá um desmantelamento.

Se fizermos isso, enquanto estivermos a seguir esse caminho, podemos começar a levantar algumas das sanções, sobretudo se pudermos ajudar as pessoas comuns, em vez do regime.

Por exemplo, existe uma proibição de venda de bens de luxo que entram no país, o que significa que Kim Jong-un não pode comprar relógios da Rolex vindos de Macau e dá-los a quem lhe é mais próximo. Seria bom, por exemplo, levantar a proibição de venda de petróleo, porque o petróleo permite ao país ter as luzes acesas e os aquecimentos ligados durante o inverno. Vamos levantar a proibição de venda de produtos farmacêuticos, por exemplo. Isso poderia melhorar as coisas para a população norte-coreana.

Não sei se Donald Trump é capaz de compreender isto, a verdade é que ele não aceita conselhos do Departamento de Estado e dos seus embaixadores, o que é lamentável. Mas Kim Jong-un precisa de um acordo se quer continuar no poder.

Como é que este o regime pode acabar? Acho que há duas formas: na primeira, não há acordo, as pessoas ficam mais esfomeadas, a fome chega ao Exército e alguém decide substituir Kim Jong-un. Se forem por essa via, será muito pouco provável que alguém no Exército substitua Kim sem ter antes uma conversa com Pequim, para perceber se concorda. E isso pode acontecer: termos uma nova liderança na Coreia do Norte de mais um ditador, a situação de Direitos Humanos não evolui para melhor, a situação política não evolui para melhor, mas temos alguém com quem Pequim e talvez Seul possam trabalhar.

Por outro lado, sabemos que desde que Kim Jong-un assumiu poder as pessoas estão ainda mais desesperadas. Estamos a começar a ouvir vários relatos de casos de corrupção entre a elite. Antes, toda a gente sofria em conjunto, mas agora sabemos que elementos da elite fazem uso da sua posição para fazer subornos e que recorrem à corrupção. Se temos uma situação em que a elite política é vista como parasita, com pessoas que apenas exploram a população comum, então isso será algo que poderá causar problemas, seria obviamente muito difícil, porque qualquer resistência ao país seria recebida com força, como aconteceu na Praça Tiananmen, com respostas muito violentas por parte de um regime violento.
“Trump está a colocar-se numa guerra comercial desastrosa”
A China está interessada numa solução? Pequim não está interessada numa invasão a partir de uma das suas fronteiras. Qual é o papel da China?

A China continua a estar preocupada com a Coreia do Norte. Está preocupada com uma eventual crise de refugiados na fronteira, algo que a fome pode acentuar. Também está preocupada com o reator de Yongbyon, que está próximo da fronteira chinesa. Ninguém quer ter um desastre nuclear nas suas fronteiras, porque se nesse dia os ventos estiverem na direção errada pode ser muito mau para a China.

No entanto, posso dizer que há um ano eu estive em Pequim e toda a gente estava muito assustada com os testes de mísseis, e concordaram, pela primeira vez, com as sanções. Basicamente, defendiam os cortes no abastecimento de petróleo à Coreia do Norte, os cortes em vários setores do comércio, e ainda o encerramento de contas bancárias norte-coreanas em Xangai, Hong Kong e Macau, que a elite usa para colocar o dinheiro offshore.

Mas, um ano depois voltei a Pequim e agora a história é diferente: já não estão tão preocupados. Agora a China está numa guerra comercial com os Estados Unidos, por isso tudo o que for um problema para os Estados Unidos, será bom para a China. Se Trump tiver problemas com a Coreia do Norte ou com Putin, com a União Europeia, com quem quer que seja, isso será bom para a China. A China só está interessada neste momento na guerra comercial e na questão que envolve a Huawei.

Neste momento, a situação é muito tensa. Acho que Donald Trump não compreendeu a China, da mesma forma que não compreendeu a Coreia do Norte, e está a colocar-se numa guerra comercial desastrosa com a China, da mesma forma que se colocou numa negociação ridícula com a Coreia do Norte. Até que a guerra comercial seja resolvida de alguma forma – e é difícil antecipar qualquer fim imediato dessa questão – Donald Trump não vai poder contar com qualquer ajuda por parte da China.


Até aqui, a China foi como que a interlocutora da Coreia do Norte para o resto do mundo. Esse papel perde-se com a guerra comercial?

De certa forma. Mas há outras formas de envolver a China nas negociações. Uma das coisas que está a acontecer é que o Japão está a falar mais diretamente à Coreia do Norte, a Coreia do Sul está a falar mais diretamente com a Coreia do Norte. E a China pode estar envolvida nesse processo, numa solução do leste asiático.

Também é possível que a China, que é membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, lidere o processo nas Nações Unidas. As Nações Unidas têm de parar de seguir tanto o que é estabelecido pela política externa norte-americana.

Neste momento, a China está numa posição complicada. Para a China, a situação de guerra comercial tem de ser resolvida antes que seja feita mais alguma coisa sobre a questão norte-coreana.

Qual é o melhor acordo nuclear que pode ser alcançado? Aliás, há algum acordo alcançável neste momento, tendo em conta o que se passou com o Irão?

O acordo com o Irão é interessante e fornece um modelo possível. Mas acho que devemos começar por aceitar, neste caso, que a Coreia do Norte já é uma potência nuclear, já pertence ao clube nuclear, e este não é um clube muito extenso.

Claro que podemos argumentar que foi uma perda considerável de tempo e de dinheiro para a Coreia do Norte ter desenvolvido armas nucleares, quando a população passa fome. Mas essas armas dão-lhes poder de negociação, não vale a pena fingir que elas não existem. Não podemos fazer com que o relógio ande para trás. Não podemos “desinventar” armas nucleares. O que podemos é tentar um congelamento, para que eles não façam mais testes ou desenvolvam mais armas.

Podemos tentar fazer com que voltem à Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), podemos trazê-los de volta ao Tratado de Não-Proliferação, podemos voltar ao que Bill Clinton tentou fazer, que foi tentar afastá-los do poder nuclear a nível militar, fazer com que usem tecnologia nuclear sem que sirvam propósitos militares. Isso seria ótimo! Uma rede de eletricidade com o contributo nuclear, tendo em conta que eles têm pouco carvão e petróleo, manteria as luzes ligadas nos hospitais e escolas em vários locais do país.

Há imensa coisa que podemos fazer. Apenas temos de aceitar como ponto de partida que a Coreia do Norte é um poder nuclear. Temos de perceber, os Estados Unidos têm de perceber, que por vezes não conseguimos exatamente o que queremos. Claro que gostaríamos que os norte-coreanos nos entregassem todas as suas armas nucleares e que nunca fizessem nada de novo. Mas isso nunca vai acontecer. Eles são um Estado soberano, podemos não gostar deles, podemos não gostar do sistema político, mas eles são um país independente. Temos de respeitar isso. Temos de aceitar a realpolitik, a realidade da situação, e negociar de forma sensata a partir daí. O mais importante é fazer essas negociações em várias etapas, porque o que precisamos de fazer é voltar à posição que tínhamos com Clinton, antes de George Bush e do “Eixo do Mal”, e voltar a uma posição em que possamos confiar uns nos outros.

Vamos envolver as Nações Unidas, vamos envolver a AIEA, vamos seguir nessa direção com pequenos passos de forma a permitir que se construa confiança entre os dois países. De início, talvez seja uma boa ideia ter uma cimeira entre Kim e Trump, tal como aconteceu, mas depois disso tem de haver trabalho de equipas especializadas, do Departamento de Estado e dos responsáveis do Ministério norte-coreano dos Negócios Estrangeiros, as Nações Unidas, dos cientistas atómicos. Há muita gente que pode oferecer ajuda neste processo: a União Europeia por exemplo, o Reino Unido, que tem uma embaixada em Pyongyang, os canadianos, os australianos, os russos, os chineses. Todos podem estar envolvidos. São várias organizações que podem ajudar a construir confiança e trazer a Coreia do Norte para o sistema mundial.
“Eles viram a estátua de Saddam a cair”
Falou de “pequenos passos”, mas ninguém parece estar interessado em dar pequenos passos. A Coreia do Norte gostaria de abolir por completo as sanções e os Estados Unidos gostariam de retirar todas as armas nucleares a Pyongyang.

É verdade que os norte-coreanos estão a ser um pouco beligerantes ao dizerem que as sanções têm de ser levantadas. Os EUA estão a ser um pouco beligerantes ao dizerem que eles têm de desistir de todas as armas nucleares e entregá-las. O que sugiro é que haja alguma aceitação. A Coreia do Norte é a Coreia do Norte. Nós somos os miúdos grandes no recreio.

Os norte-coreanos são difíceis, mas sabem como funciona a diplomacia a nível global. Eles sabem como é que os tratados de paz funcionam. E eles também sabem o que acontece a países como o Iraque ou a Líbia.

Não estou a sugerir que sejam ameaçados, de forma alguma. O que digo é que eles não precisam que lhes expliquem, eles sabem. Eles viram a estátua de Saddam a cair, eles viram Khadafi a ser arrastado do seu carro e a ser morto. Eles viram tudo isto a acontecer e sabem como estas situações podem acabar.

Certo é que as sociedades que emergiram no Iraque, Síria, na Líbia, após o derrube de regimes, não são perfeitas e foram talvez ainda piores para quem vive nesses países. Por isso, existe uma necessidade mútua de conseguir algum acordo. De início, considero que devemos aceitar, pelo menos inicialmente, que não estamos a tentar obter uma mudança de regime na Coreia do Norte, estamos apenas a tentar que o mundo seja um lugar mais seguro, evitando uma corrida ao armamento e quaisquer acidentes com mísseis ou desastres com reatores nucleares.

Falou há pouco da cimeira de Singapura, o encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un. A cimeira no Vietname, este ano, não correu tão bem. Qual é o futuro desta relação entre os dois líderes, mesmo com a interferência de elementos como John Bolton ou Mike Pompeo do lado norte-americano?

É difícil perceber a quem é que Trump dá ouvidos. Mas ele tem dado ouvidos aos generais, e os generais já o avisaram de que não é possível vencer uma guerra. Melhor, é possível vencer a guerra, mas os Estados Unidos não querem sacrificar Seul. No caso da Coreia, Trump tem ouvido mais o Exército do que Bolton.

A razão pela qual considero uma futura cimeira pode acontecer, a razão que pode levar a que toda a gente se acalme depois da segunda cimeira e volte a esforçar-se, é saber que ambos os lados precisam de alguma coisa: Trump precisa de uma vitória em política externa antes das eleições, e esta é uma forma como a pode obter. Por outro lado, Kim Jong-un precisa de levantar as sanções. Ambos têm algo que pretendem alcançar. Se conseguirmos que Kim Jong-un seja razoável, e se conseguirmos que Donald Trump fale com o Departamento de Estado, Embaixadores e generais, será mais fácil. Deve depois estruturar-se um acordo com pequenos passos, construindo confiança entre os dois lados.

Sou otimista. O meu livro é otimista. Não tenta disfarçar o facto de termos um enorme problema de Direitos Humanos na Coreia do Norte, temos enormes tragédias económicas e pessoais no país. Mas como aquela frase atribuída a Winston Churchill costumava dizer, é sempre melhor ter “jaw jaw” (negociações) que “war war” (guerra). Se não nos queremos envolver e negociar com a Coreia do Norte, então a única alternativa é ir para a guerra com a Coreia do Norte. Isso seria um cenário desastroso que acho que não devemos considerar.

Fotografias: RTP, Reuters, KCNA