Covid-19. Como as vacinas se tornaram um instrumento de política externa

por Inês Moreira Santos - RTP
Leszek Szymanski - EPA

A pandemia transformou o mundo nos últimos meses, incluindo os mercados financeiros e o panorama político. As vacinas contra a Covid-19 são, agora, e à semelhança de bens como o petróleo, a nova moeda para a diplomacia internacional: países mais desenvolvidos e com mais recursos económicos e humanos começam a usar as vacinas como meio de obter favores ou melhorar os laços com outras nações.

Países como a Índia, a China ou os Emirados Árabes Unidos estão a doar doses de vacinas a outros países, numa tentativa de poder, de alguma forma, controlá-los. Em alguns casos, enviam milhares de vacinas para outras nações, apesar de também continuarem a precisar de satisfazer as suas próprias carências e necessidades no que diz respeito à vacinação e à sua situação epidemiológica.

A vacina contra o Sars-Cov-2 tornou-se uma das mercadorias mais procuradas no mundo e uma nova moeda para a diplomacia internacional.

De acordo com o New York Times, a Índia é uma das grandes potências na produção de vacinas e está a distribuir milhões de doses para países vizinhos e até para outros mais distantes. O objetivo é competir com a China, que fez da distribuição de vacina um elemento central nas suas relações externas.

Já os Emirados Árabes Unidos, com base no poder do petróleo, estão a comprar milhares de doses pelos seus aliados, avança ainda o jornal.

Mas esta estratégia pode acarretar riscos.

A Índia enviou vacinas para o Nepal, que está cada vez mais sob a influência da China. O Sri Lanka, cuja fronteira é disputada entre Nova Déli e Pequim, está a receber vacinas tanto da Índia como da China.

O problema é que, embora estes dois países estejam a produzir vacinas para o resto do mundo, têm vastas populações e também têm de as imunizar contra a covid-19.

"Os indianos estão a morrer. (...) Ainda estão a apanhar a doença", disse ao NYT Manoj Joshi, da Observer Research Foundation de Nova Déli. "Eu podia entender, se as nossas necessidades tivessem sido satisfeitas e então tínhamos oferecido as vacinas. Mas acho que há uma falsa superioridade moral que o país está a tentar transmitir, ao dizer que estamos a doar as nossas vacinas antes mesmo de as usarmos".
Vacinas e guerras políticas

O lançamento de vacinas contra o coronavírus começou nos países mais desenvolvidos, mas a imunidade de grupo levará tempo até ser alcançada.

Neste momento, a capacidade de produção das vacinas representa o principal obstáculo, já que muitos países desenvolvidos encomendaram mais doses do que precisam. Por isso, independentemente dos programas de cada país e das atitudes individuais, é necessário produzir mais vacinas.

Por outro lado, independentemente da logística, isto representa custos e gastos económicos que são mais significativos para países menos desenvolvidos e com menos recursos.

A China foi o primeiro país atingido pela covid-19 e foi dos primeiros a lançar uma vacina. Mas o seu foco está na exportação de doses, em parte como moeda de troca diplomática. A Índia também dispõe de um enorme stock de vacinas mas, antes de garantir a imunização da sua própria população, quer alargar o seu espaço de influência ajudando outros países e fazer, assim, frente à China.

Enquanto no Oriente as vacinas servem de moeda de troca nas disputas diplomáticas e territoriais, países desenvolvidos como os Estados Unidos ou o Reino Unido estão a encomendar todas as doses possiveis e a garantir que as suas populações são vacinadas, tendo até já mais doses do que as que necessitam realmente.

Por outro lado, os países mais pobres, com os sistemas de saúde em ruptura, tentam arranjar os seus próprios recursos e aceitam as doações das grandes potências, mesmo em troca de alguma "recompensa".

"Em vez de proteger um país ao enviar militares, pode proteger o país a salvar vidas, a salvar a sua economia, ao ajudar com a vacinação", disse Dania Thafer, diretora executiva do Gulf International Forum, um grupo de estudos baseado em Washington.
China versus Índia
A China foi um dos primeiros países a fazer uma campanha diplomática com as vacinas e a prometer ajudar os países em desenvolvimento no ano passado, ainda antes de produzir em massa uma vacina eficaz.

Mas alguns dos esforços da diplomacia usando as vacinas da China falharam com os atrasos na entrega das doses e a falta de divulgação sobre a eficácia destas vacinas. Entretanto, surgiram novos surtos inesperados em território chinês e as suas próprias necessidades mudaram.

A Índia, por outro lado, viu na produção em massa de vacinas uma oportunidade para mudar a sua imagem aos olhos do mundo.

O Serum Institute of India, a maior fábrica de vacinas do mundo, produz a vacina AstraZeneca-Oxford a um ritmo diário de cerca de 2,5 milhões de doses. A este ritmo, a Índia começou a distribuir doses gratuitamente aos países vizinhos: Nepal, Bangladesh, Mianmar, Maldivas, Sri Lanka, Seychelles e Afeganistão.

"A vizinhança da Índia tornou-se mais populosa, mais competitiva", explicou Constantino Xavier, que estuda as relações da Índia com países vizinhos no Centro para o Progresso Social e Económico de Nova Deli. "O impulso da vacina reforça a credibilidade da Índia enquanto provedor de confiança com soluções e respostas para as crises desses países vizinhos".

O governo indiano tem tentado, desta forma, marcar pontos ao publicitar que envia doses para países como Brasil e Marrocos, embora estes países tenham comprado também outras vacinas.

Neste momento, a Índia pode continuar a doar vacinas, mesmo tendo vacinado apenas uma pequena percentagem da sua população, porque a produção no país decorre a um ritmo mais rápido do que o programa de vacinação indiano consegue suportar, sobrando, assim, doses extra para doar e exportar.

Contudo, estas doações são mais do que simples "boa vontade" política. O Sri Lanka é um bom exemplo disso, sendo as doações de vacinas da China e da Índia uma batalha de influências.
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