Defensor dos indígenas. Antropólogo desaparecido na Amazónia tinha sido exonerado por Bolsonaro

O antropólogo brasileiro Bruno Pereira, que juntamente com o jornalista britânico Dom Phillips desde domingo está desaparecido, era um conhecido defensor dos direitos dos povos da Amazónia, em especial das tribos isoladas que não têm contacto com a civilização industrial. Por esse motivo, fora afastado das suas responsabilidades logo que assumiu o poder o presidente Jair Bolsonaro.

Inês Moreira Santos - RTP /
Reuters

Bruno Pereira, de 41 anos, é um antropólogo defensor dos indígenas amazónicos que não se assemelhava à imagem e ao estereótipo de “explorador da Amazónia” – um “espadachim solitário”, de mochila às costa e armado com uma faca. Um colega deste investigador descreveu-o ao Guardian como uma pessoa “atenciosa, dedicada e totalmente comprometida com os tradicionais povos da Amazónia”.

Segundo a mesma fonte, “os exploradores da Funai [Fundação Nacional do Índio] não gostam de ser chamados de heróis”. Contudo, “essas pessoas são heróis e Bruno é um deles”.

“Esteja o Bruno vivo ou morto, a sua coragem vive em cada pessoa que acompanhou o caso desde que desapareceu. Está presente em cada brasileiro que pede justiça”.

Especialista demitido por Bolsonaro
Na terça-feira, o presidente brasileiro expressou que desejava que o jornalista britânico e um antropólogo brasileiro fossem encontrados, mas admitiu, entre as hipóteses possíveis, que eles podiam ter sido executados.

Em entrevista ao canal de televisão SBT, Jair Bolsonaro falou sobre o desaparecimento de Dom Phillips, colaborador do Guardian, e de Bruno Araújo Pereira e assegurou que, já no domingo, quando surgiu a informação sobre o desaparecimento, as autoridades policiais e militares da região iniciaram as buscas e que foram recolhidos depoimentos de pessoas que tiveram contacto com Phillips e Pereira nos últimos dias.

Apesar da preocupação manifestada pelo chefe de Estado brasileiro, o defensor das comunidades indígenas da Amazónia foi demitido, em 2019, por motivos políticos, pouco depois de Bolsonaro assumir a Presidência do Brasil.

Bruno Pereira liderava, na altura, a Funai – o órgão indígena oficial do Estado brasileiro – e tinha dado a cara por uma campanha de defesa dos direitos das comunidades amazónicas e do ambiente, que impediu a exploração de uma das maiores minas ilegais da região. A sua demissão foi contestada e, embora nunca tenha sido justificada, a Funai interpretou a decisão como uma forma de Bolsonaro continuar a retirar os direitos e proteções dos povos indígenas do Brasil.

Numa carta aberta enviada ao presidente brasileiro, a entidade oficial afirmou, na época, que a demissão repentina do antropólogo “representa mais um retrocesso na política de proteção aos povos indígenas isolados”.

“É quase como se este Governo tivesse uma regra: remover pessoas dedicadas e competentes e colocar incompetentes no seu lugar”
, lia-se na carta.

Bolsonaro não esconde que quer apostar no desenvolvimento do país, seja a que custo for, e desde que assumiu o Poder, foram vários os exemplos de pessoas que, à semelhança de Bruno Pereira, foram afastados da Funai. Além disso, cortou nos orçamentos do “gás, proteção policial”, não tendo “sobrado absolutamente nada”, contou ao jornal britânico Antenor Vaz, ex-líder da Funai.

“O desmantelamento consistiu em transferir pessoas dedicadas para outras áreas fora do campo e nomear pessoas que não tinham nenhuma ligação às questões indígenas. Um pastor evangélico entrou para coordenar o trabalho que o Bruno fazia”, acrescentou.

Embora o afastamento da Funai tenha marcado o fim da carreira governamental de Bruno Pereira, o defensor dos indígenas ajudou a fundar o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Contato Recente (OPI), uma organização não-governamental dos 26 grupos indígenas do Vale do Javari, uma área remota na fronteira oeste do Brasil com o Perú.

As organizações indígenas e os seus aliados como Bruno estão a fazer o que a Funai não pode fazer: defender índios isolados”, disse ao jornal Maria Emília Coelho, amiga e colega do antropólogo. “O Bruno é um grande defensor do movimento indígena e por isso veio trabalhar com estas organizações”.
Governo não apoia defensores de terras indígenas
Ao longo da sua carreira, Bruno Pereira defendeu uma política de “não contacto” com tribos isoladas, seguindo os passos de célebres antropólogos e exploradores como Orlando Villas Boas e Sydney Possuelo - política da década de 1980, que visa deixar as tribos isoladas em paz, a menos que enfrentem perigo iminente. Ou seja, se as ameaças de invasores, como madeireiros ou exploradores de minas, forem reais, são feitas tentativas para proteger de forasteiros as suas terras e reservas.

“A situação agravou-se muito nos últimos anos porque temos um presidente que fomenta a violência”, contou Fábio Ribeiro, coordenador-executivo da OPI. “As pessoas que têm estas táticas confiam num Governo como este. Bolsonaro apoiou as minas ilegais e a impunidade aumentou. Podemos ver isto a acontecer mesmo diante dos nossos olhos. O número de invasões aumentou drasticamente”.

Bruno Pereira enfrentou mais de uma vez ameaças, mas acreditava estar a fazer o melhor para os povos que admirava e respeitava.

Ele via isto como uma situação que pode chamar a atenção do mundo para o que está a acontecer nas terras indígenas; a impunidade, a violência, a indiferença do Governo para com os direitos básicos”, disse ainda Fábio Ribeiro. “E, claro, para uma nova política para proteger grupos isolados e as suas terras.”

Segundo o mesmo, o antropólogo agora desaparecido também rejeitaria qualquer tentativa de ser visto “como um mártir ou mesmo um sucessor dos sertanistas [primeiros exploradores].

“Se o considerarmos o herdeiro dessas pessoas, o caso passa a ser de um individuo e diminui o papel de todos os outros”
, explicou. “Tem tudo a ver com a implementação de políticas institucionais. Não se trata de pessoa A ou pessoa B, trata-se de cumprir as leis e regulamentos. Não há Indiana Jones aqui”.

O Vale do Javari é uma extensa região de rios e selva no coração da Amazónia, na fronteira com o Peru, e abriga o maior número de indígenas isolados do mundo. A área, onde desapareceram o jornalista e o antropólogo, está ameaçada pela pesca e mineração ilegal e nos últimos anos tornou-se uma rota de tráfico de drogas.

O paradeiro de Phillips e Pereira, profundos conhecedores daquela área, perdeu-se quando eles viajavam da comunidade de São Rafael para a cidade de Atalaia do Norte, no Amazonas, onde deveriam ter chegado na manhã de domingo. O jornalista e o indigenista viajavam num barco novo, com 70 litros de gasolina, o suficiente para fazer o trajeto planeado, e foram vistos pela última vez perto da comunidade de São Gabriel, a poucos quilómetros de São Rafael.

Pereira, que trabalha na região há anos, foi alvo de várias ameaças de mineradores ilegais, madeireiros e até traficantes de drogas que atuam na região, o que levantou receios de um assassinato entre os seus próximos. Phillips, por sua vez, é um jornalista veterano radicado no Brasil há 15 anos e que colaborou com diversos meios de comunicação internacionais, como Financial Times, New York Times e Washington Post, entre outros, e atualmente trabalha numa investigação para um livro sobre o vale do Javari.
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