Desastre diplomático. Austrália impede Xanana de testemunhar a favor de whistleblower

A pretexto da pandemia de covid-19, Xanana Gusmão foi impedido de ir a Camberra prestar testemunho a favor do seu antigo advogado, Bernard Collaery, que lhe revelara a espionagem levada a cabo pela Austrália contra Timor, para se apoderar de recursos petrolíferos timorenses. A história saldou-se num fiasco para os negócios australianos e continua a saldar-se num desastre para a sua diplomacia.

RTP /
Xanana Gusmão (dir.), com o primeiro-ministro australiano John Howard, no tempo em que era espiado por ordem deste Lirio Da Fonseca, Reuters

Os fabulosos jazigos de petróleo em águas territoriais timorenses são disputados de há muito. Já nos anos 1960, Portugal como potência colonial quisera discutir com a Austrália e com a Indonésia uma linha de demarcação desses jazigos. A Austrália recusara discuti-la com uma potência decadente e incapaz de impor os seus interesses no terreno, e optara por negociar um acordo apenas com a Indonésia.

Com o 25 de Abril de 1974, os acontecimentos precipitaram-se e a Fretilin conseguiu obter uma efémera independência maubere. A ditadura indonésia de Suharto, sentindo nessa independência uma ameaça à estabilidade de um regime baseado no terror, apressou-se a invadir Timor-leste, sob um coro de protestos da comunidade internacional, mas com a anuência silenciosa da Austrália. Sem surpresas, a invasão indonésia e a posterior anexação de Timor-leste restabeleceram as garantias dadas à Austrália nas negociações sobre o petróleo.

Sem surpresas também, o grande movimento dos anos 1990 que conquistou a independência de Timor Lorosae voltou a causar dores de cabeça aos responsáveis políticos e aos lobbies económicos australianos. A incógnita era sobre o que faria o novo Governo timorense, que não tinha quaisquer motivos para reconhecer os acordos assinados nas costas do seu povo, pelos mesmos que contra ele cometeram um genocídio (Indonésia) e que encobriram esse genocídio (Austrália).

Seja como for, o Governo australiano teve de sujeitar-se a renegociar a linha de demarcação dos jazigos petrolíferos, tendo pela frente uma equipa chefiada por Xanana Gusmão. Para mais certeza de poder manipular a seu contento essas negociações, instalou um sofisticado sistema de escutas ao Governo timorense, que funcionava em 2004 e veio a ser reconhecido pelo Governo australiano em 2013.

A importância atribuída ao golpe da secreta australiana contra Timor era de tal ordem que, sabe-se agora, foram desviados para ele fundos e recursos que no debate orçamental tinham sido atribuídos à prevenção do terrorismo. Com um problema de legitimidade, que em breve se faria sentir: para uma parte dos agentes australianos, nomeadamente Collaery, a luta contra o terrorismo tinha uma justificação que faltava a esta intriga contra um vizinho amistoso e dialogante.

Assim, antes do reconhecimento público por parte da Austrália, já Xanana tinha sabido da acção de espionagem através de um dos agentes desta, o também seu advogado Collaery, e através de uma outra testemunha, identificada apenas como "agente K" -  que alguns supõem ser a ex-mulher do próprio Xanana, a australiana Kirsty Sword. 

Graças a essa informação, Timor impugnou junto do Tribunal da Haia o resultado das negociações que era, mais uma vez, escandalosamente favorável à Austrália e que em boa parte se devia à negociação desleal e de má fé. E o Governo australiano não só teve de admitir a manipulação das negociações - por parte "de um dos países mais ricos do mundo contra um dos mais pobres do mundo", como comenta The Guardian -, como também teve de aceitar a linha de demarcação reclamada por Timor.

Para além desse revés substancial para os apetites energéticos australianos, a denúncia da espionagem contra um país vizinho fragilizou enormemente as alegações de indignação australiana contra o expansionismo chinês nos mares do Sul da China. Ao revés económico, juntava-se uma débacle de política externa.

Mas alguém devia pagar por esses amargos de boca e, em junho de 2018, o procurador-geral australiano, Christian Porter, aceitou uma queixa contra Bernard Collaery por ter denunciado a operação ilegal de espionagem. Xanana prontificou-se a viajar para Canberra e a depor como testemunha de defesa de Collaery, mas vê-se agora impedido de fazê-lo, a pretexto das restrições resultantes da pandemia.

E, já agora, decidiu-se também que o julgamento irá ocorrer à porta fechada, sem acesso da imprensa às suas sessões mais importantes.
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