Dia Zero. O momento em que as torneiras vão secar na Cidade do Cabo

Abrir uma torneira e vê-la jorrar água. É um ato tão comum que nunca imaginamos um dia em que tal quadro possa desaparecer. E é este o verbo que mais se aplica, de forma crescente, a vários locais no planeta. Um exemplo é a Cidade do Cabo, na África do Sul.

A água potável é escassa, a chuva teima em não cair e as autoridades já estão dar ordens de racionamento à população.

A expressão Day Zero, ou Dia Zero, tornou-se a referência para o dia em que a água vai mesmo deixar de correr nas torneiras da Cidade do Cabo. A data está marcada no calendário: 4 de junho de 2018.Quatro milhões de habitantes
Imagine que em Lisboa e arredores, desde Cascais até Vila Franca de Xira, as torneiras deixavam, de uma hora para outra, de fornecer água. É exatamente isto o que pode acontecer na Cidade do Cabo, na África do Sul.
"A primeira grande cidade no mundo [Cidade do Cabo] está a ficar sem água”. (...) O banho diário não pode ultrapassar os 90 segundos. Tempo esse que conta a partir do momento em que abre a torneira. Sem tempo o necessário para o aquecimento" - Aurélie de Sousa, portuguesa a viver atualmente na Cidade do Cabo.
Trata-se de uma cidade com uma área de cerca de mil quilómetros quadrados - aproximadamente toda a zona norte da Área Metropolitana da Lisboa - e uma densidade populacional de quatro milhões de habitantes, que pode ficar privada de água a partir de junho.

As autoridades locais têm vindo a apelar à redução de consumo e todos os dias relembram a proximidade do Dia Zero.

Atualmente a população já está limitada a 50 litros de água diária, contra os anteriores 87 litros. Há mesmo coimas aplicar a quem ultrapasse o valor limite.Portugueses sentem a falta de água
A falta de água não olha a etnias, ideologias ou nacionalidades. Quando acaba, acaba e os habitantes que vivem em regiões mais fustigadas pela secura conhecem bem o seu valor.

Os habitantes da Cidade do Cabo estão agora, ao fim de três anos de pouca pluviosidade, a sentir na pele a escassez do líquido precioso.

É o que consubstancia o relato, na rede social Facebook, de uma estudante portuguesa a viver na Cidade do Cabo. Aurélie de Sousa refere mesmo: "Nem imaginam o que consegui hoje!! Consegui comprar água. Seis litros ao certo. A primeira grande cidade no mundo… que está a ficar sem água".

Esta estudante explica que o banho diário não pode ultrapassar os 90 segundos. Tempo esse que conta a partir do momento em que abre a torneira. Sem tempo o necessário para o aquecimento. Toda a água é poupada para reutilização.

O autoclismo apenas é usado uma vez por dia e a loiça é limpa previamente com um guardanapo para retirar a maior parte da gordura, antes de lavar.

Aurélie de Sousa revela um pouco da intimidade da vizinhança e explica que o banho do bebé da vizinha é feito num balde. “Não há lugar para brinquedos flutuarem à superfície”, remata.

“É chato, é desconfortável, mas faz-se. O pior ainda está por chegar (…) Não haverá água a sair do duche, não haverá água a sair da torneira para o copo e milhares de pessoas nesta cidade já não vão ter autoclismo para puxar”.


Duzentos pontos de reabastecimento
O dia 4 de junho é o Dia Zero. Zero água para os cerca de quatro milhões de habitantes da cidade sul-africana de Cape Town. A partir deste dia só haverá acesso a água em 200 pontos específicos e vigiados por polícias e militares.


Estas imagens de satélite permitem visualizar a falta de água ao longo do tempo na maior barragem da Cidade do Cabo.  Uma das principais fontes de água da região.

Mas até nesta data haverá restrições. As pessoas terão somente acesso a 25 litros - cerca de 6,5 de água por dia. Água que terá de servir para fazer comida, beber, tomar banho e toda a higiene diária.

Apenas alguns serviços específicos como hospitais, clínicas e escolas vão estar isentos do corte, continuando a ter acesso a água corrente.

É situação de crise que poderá desencadear levantamentos civis numa região já tida como volátil e de muitas desigualdades sociais - a África do Sul é um dos países com maior taxa de desigualdade no mundo e a Cidade do Cabo tem dos maiores índices de criminalidade violenta do país.

A crise ambiental, que abrange todas as franjas da sociedade, está, por outro lado, a ser aproveitada a nível político.  A Cidade do Cabo e a província em que esta se situa, Cabo Ocidental, são governadas pela Aliança Democrática. Mas o Governo nacional, bem como todos os outros governos provinciais do país, são dirigidos por outro partido, o histórico Congresso Nacional Africano (ANC).

Os analistas locais dizem que as diferenças partidárias ajudaram à lenta resposta da Cidade do Cabo ao fator seca, logo no início da crise, e com o tempo e a falta de iniciativas de emergência tornou-se mais difícil obter uma frente unida.Como se chegou a este ponto crítico?
Como foi possível que uma cidade moderna, em pleno século XXI, ficasse assim dependente de um recurso hídrico essencial?  Recorde-se que a Cidade do Cabo chegou a ser, há alguns anos, um exemplo de políticas de conservação de água particularmente sofisticadas.

Com ações proativas, a Cidade do Cabo realizou durante os últimos anos uma série de obras de renovação e conservação do sistema de canalização, afetado por ruturas e problemas próprios do envelhecimento - os especialistas acreditam que estes problemas levariam ao consumo de cerca de 40 por cento da água injetada na origem.

Em 2015, a Cidade do Cabo a ganhou mesmo um prémio internacional de prestígio pela aplicação de políticas de conservação da água. Mas foi também nesse ano que começou uma seca severa, sem precedentes desde que há registo histórico, e que ainda perdura.

Contrariamente a outras cidades, que contam com fontes diversificadas, como aquíferos subterrâneos ou centrais de dessalinização, a Cidade do Cabo obtém quase toda a água (99 por cento) de barragens periféricas que dependem da chuva.

Durante décadas os vários governos locais - e com períodos de chuva regulares - pensaram que as barragens eram em número suficiente, bem como em tamanho, mesmo enfrentando uma seca esporádica. Mas a região começou entretanto a debater-se com a alteração do comportamento do clima, sentida, de resto, em outras partes do planeta. Portugal incluído.

A capacidade hídrica está neste momento a um quarto do seu máximo.


A mesma fonte. Diferentes consumos
O Dia Zero já esteve agendado para 16 de abril. Seria um cenário ainda mais negro, caso não tivessem sido entretando tomadas medidas restritivas muito severas. Um dos sectores com maiores restrições é o das plantações agrícolas.

Com uma escassez de água natural, esta região sul-africana, totalmente dependente das chuvas, alimenta-se em exclusivo da água recolhida pelas barragens. Fontes que servem populações e culturas.

Com o evoluir da situação, e  após várias medidas restricionistas essa data foi adiada para 11 de maio. Esta segunda-feira o vice-presidente camarário Ian Nielson anunciou que a data voltaria a ser adiada graças aos esforços de contenção.

"Dia Zero: o dia em que teremos que fazer fila para a água, foi movido para 4 de junho de 2018, devido aos esforços verificados e que primitiram reduzir o uso controlado de água e no seu consumo. Isso é muito encorajador, mas não podemos relaxar esforços ", afirmou Ian Nielson.

É ainda assim uma solução provisória, que em nada evita a restrição diária de 50 litros de consumo diário per capita, sendo o novo objetivo diário de consumo coletivo de 450 milhões de litros por dia.

"Os habitantes da Cidade do Cabo devem continuar a reduzir o consumo se quisermos evitar o Dia Zero. Não houve qualquer declínio significativo no uso urbano. Todos os cidadãos devem, portanto, continuar a usar menos de 50 litros por pessoa por dia para ajudar a esticar os nossos diminuídos stoks", informou o autarca.Água falta para ricos e pobres. Será assim?
De acordo com o quinto relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas, os modelos climáticos a longo prazo indicam uma tendência de seca significativa na região da África do Sul, podendo mesmo haver reduções pluviais anuais de até 40 por cento.

Neste sentido, as políticas locais vão no sentido da minimização do problema, como a construção de alternativas, como projetos de dessalinização, novas sondagem de aquíferos e reciclagem de água. Soluções que visam esticar a oferta atual.

Mas a prioridade é mesmo a redução do consumo habitacional. Segundo dados avançados recentemente pelas autoridades da Cidade do Cabo, só cerca de 55 por cento dos residentes estão realmente a consumir a água que lhes é imposta por dia.

Com o aproximar do Dia Zero e sem restrições no consumo, muitos começam já a criar pontos alternativos de armazenamento.

Muitos dos habitantes com maior capacidade monetária estão a construir tanques de água privados em casa. Já os cidadãos de baixos recursos não têm outra solução além de usar a água da torneira. Muitos recorrem a bidões e garrafões de água como reserva suplementar.

Outro dos problemas comos quais se debatem as autoridades locais são as filas que se acumulam nos pontos de abastecimento. Dificuldades que podem dar lugar a graves problemas sociais.

"A primeira e principal prioridade do Governo será tentar anular a anarquia", diz Patrick Reed, especialista em gestão sustentável da água da Universidade de Cornell.

Chuva pode ajudar a anular o Dia Zero
“Não podemos prever com precisão o volume de chuvas ainda por vir, ou quando virá ", diz o vice-presidente da Câmara da Cidade do Cabo, Ian Neilson.

Este fenómeno atmosférico, persistente, deve-se à presença de uma alta pressão situada no Oceano Atlântico que está a atuar como uma barreira, segundo os meteorologistas. Uma barreira que está a afastar as nuvens e a chuva desta região junto ao Pólo Sul e que, avisam os especialistas, é uma consequência do aquecimento global.

Ainda assim, as autoridades procuram mostrar-se convictas de que até meados de maio, altura em que se regista a estação chuvosa naquela região do globo, caia do céu água em quantidade suficiente para saciar a sede. Das pessoas e da terra.