Diplomata português que negociou o referendo de 1999: "Soubemos dar voz a Timor"

Em “O Negociador: Revelações diplomáticas sobre Timor-Leste 1997-1999”, Fernando d’Oliveira Neves, protagonista português no processo de negociação que levou à realização do referendo, relata a sua experiência diplomática durante dois anos de intensas conversações. Na entrevista à RTP/Antena 1, o embaixador revive aquela que considera ser “a mais implausível negociação diplomática portuguesa” contra a todo-poderosa Indonésia e recorda a angústia e apreensão com que viveu o processo.

Andreia Martins - RTP /
Fernando d'Oliveira Neves (à esquerda) ao lado de Jamsheed Marker, negociador das Nações Unidas para a questão de Timor, e Nugroho Wisnumurti (à direita), responsável indonésio, em janeiro de 1999, oito meses antes do referendo. Peter Morgan - Reuters

Nos anos 90, o ministro indonésio dos Negócios Estrangeiros Ali Alatas definiu a questão timorense como “uma pedra no sapato” da Indonésia. Não sabia que, poucos anos depois, Timor-Leste se tornaria na primeira nação independente do século XXI.

A autodeterminação timorense só foi possível após a realização do referendo de 30 de agosto de 1999, ao qual se seguiu uma onda de violência, impulsionada por milícias indonésias, que destruiu grande parte das infraestruturas que viriam a ser úteis ao novo país.

Essa consulta popular, considerada improvável ou mesmo impossível alguns anos antes, só foi possível graças a vários fatores, internos e externos, mas também por ter surgido na sequência de um processo de negociação complexo e tripartido, em que Portugal, Indonésia e as Nações Unidas foram os grandes protagonistas.

Quando passam 20 anos de alguns dos principais eventos que antecederam a independência de Timor, em 2002, o embaixador Fernando Neves d’Oliveira recorda em livro os dois anos de avanços e recuos, desde o momento em que Portugal foi pressionado pelos maiores aliados nos vários fóruns a deixar cair a questão timorense, até ao momento em que a comunidade internacional se uniu para defender e intervir na ascensão de um novo país.

O Negociador: Revelações diplomáticas sobre Timor-Leste 1997-1999” (ed. D. Quixote) é o livro de memórias de Fernando d’Oliveira Neves onde são contadas as peripécias de uma negociação histórica para a diplomacia portuguesa.

Em formato de entrevista - conduzida pela jornalista Bárbara Reis – o negociador conta neste livro a forma como Portugal conseguiu extinguir fragilidades e aproveitar o momento certo para apoiar um território do outro lado do mundo que queria ser livre.

Com esta publicação fica disponível o relato e o ponto de vista do protagonista português no processo de negociação que levou ao acordo sobre a questão de Timor-Leste. Em entrevista à Antena 1 para o programa Visão Global, por ocasião da apresentação do livro no Museu Oriente, em Lisboa, Fernando d’Oliveira Neves recorda o processo que marca decisivamente a sua carreira e reflete sobre a evolução de Timor-Leste após uma recente visita a este jovem país.



Porque é que diz que este é o momento que mais destaca da sua carreira? Disse, na apresentação, que foi o momento mais “rewarding”.

No trabalho diplomático estão sempre em questão os interesses do país, o que torna obviamente fascinante fazer esse trabalho. É preciso ter sempre um empenho, uma atenção, um alerta constante. Mas neste caso, havia um povo que sofria de maneira brutal há 25 anos, um povo que sofreu um dos maiores genocídios da história. Por outro lado, havia a consciência de que eu estava ali a contribuir, a colaborar, como muitas outras pessoas, para fazer nascer um novo país, um novo país de língua oficial portuguesa, um novo país com um povo que tinha uma ligação afetiva a Portugal única, absolutamente singular. Tendo tido êxito nas negociações, é evidente que foi uma recompensa como eu não podia comparar com mais nada do que fiz, embora tenha feito outras coisas que me deram muita satisfação e que correram bem, que foram muito úteis para o país. Mas de facto, a oportunidade de colaborar na nascença de um novo país que tinha vivido 25 anos de opróbrio e de injustiça, foi uma coisa que não tem paralelo.

Acreditou desde o início que o processo poderia levar a um referendo de independência? Mesmo com Portugal tão isolado nesta luta e tão criticado em palcos internacionais?

Olhe, parece estranho mas é verdade. Eu tinha esta coisa de Timor atravessada. Achava horrorosa aquela coisa de Timor ter sido ocupada pelos indonésios. Acho que Portugal teve responsabilidades nesse processo, como está dito no livro. Mas eu acreditei que era possível fazer qualquer coisa. E sobretudo, as negociações começam praticamente no momento em que muda o Governo na Indonésia. Ao princípio, a nossa máxima aspiração era conseguir uma melhoria, uma abertura do território e das condições timorenses sem nunca por em causa o princípio do direito à autodeterminação. Mas a partir do momento em que há a mudança política na Indonésia…

Nunca pensei que ia ser um referendo daí a tão pouco tempo. Nós acreditámos que fosse negociado um projeto de autonomia bom, e o que nós negociámos e o que foi acordado com os indonésios não era bom, era excelente. Muito poucas regiões autónomas do mundo teriam uma autonomia tão lata como aquela.

Eles próprios chamavam-lhe uma “autonomia internacional”, em que a ONU e Portugal continuam a ter algumas implicações no processo. Com a abertura democrática na Indonésia, então seria possível que em eleições internas em Timor, dentro da autonomia, o povo timorense pudesse exercer o seu direito de autodeterminação.

Por exemplo, no estatuto de autonomia que foi aprovado, podia haver partidos pró-independência. Portanto, numa Indonésia democrática, com o mundo a ver que, se houvesse eleições [em Timor] e ganhassem os pró-independência, o Governo indonésio teria de tirar dali algumas consequências.

Uma das coisas que conto no livro é que, a certa altura, quando as coisas começaram a avançar melhor do que nós estávamos à espera, sugeri ao representante da ONU: “Faça uma coisa: quando eu lhe faço uma proposta que você concorda, diga aos indonésios que a proposta é sua para depois serem eles a apresentá-la”. Um dos problemas de qualquer país em negociações deste tipo era salvar a face da Indonésia. A partir do momento em que era a Indonésia que propunha, nós aceitávamos, obviamente. Porque era o que nós queríamos. Mas também ninguém podia dizer: “Venceram os indonésios”.

Em diplomacia não se pode cantar vitória, como refere no livro.

As vitórias em diplomacia têm sempre consequências. Para dar um exemplo muito óbvio, o Tratado de Versalhes foi uma humilhação tal para a Alemanha que o resultado foi que, 20 anos depois, estávamos noutra guerra.

Em diplomacia, o ideal é encontrar soluções que agradem a todos. A maior parte da minha carreira foi a nível da União Europeia, e o que a União Europeia faz é isso. Estamos ali, todos os dias, a tentar encontrar acordos em que ninguém se sinta derrotado. E essa também foi uma experiência que talvez me tenha ajudado.

Quais foram as principais razões que justificam este processo e o seu sucesso negocial? As alterações na liderança da Indonésia, que já mencionou, a resistência timorense, a insistência portuguesa, as mudanças que houve a nível internacional?

Bom, em primeiro lugar, as mudanças que houve a nível internacional. A Indonésia é um grande país, é o quarto país mais populoso, é um país com uma extensão gigantesca, por onde passa 55 por cento do comércio marítimo mundial. É, portanto, um país geoestrategicamente absolutamente determinante.

A Indonésia tinha um problema com Timor. O ministro Alatas [Ali Alatas, na altura ministro indonésio dos Negócios Estrangeiros] dizia: Timor não passa de uma pedra no nosso sapato. Mas eu respondi-lhe depois: olhe que a pedra em vez de ter saído, aumentou. Ele teve, aliás, o fair play de lançar um livro de memórias sobre as memórias das negociações, que se chamou justamente “Uma Pedra no Sapato”. [“The Pebble in the Shoe: The Diplomatic Struggle for East Timor”, publicado em 2006]

A certa altura, Timor é irritante para a Indonésia, ao ponto do Suharto [Presidente da Indonésia entre 1967 e 1998] nunca ter ido à Austrália, que era o maior apoiante da Indonésia, o único país que reconheceu a integração de Timor, para não apanhar com as manifestações.

Depois há um conjunto de circunstâncias. Em primeiro lugar, a crise financeira na Ásia, que obviamente fragilizou a Indonésia. E também o papel que os Direitos Humanos assumiram nessa altura, algo sem precedentes na história da Humanidade.

Aqueles foram os oito ou dez anos em que os Direitos Humanos eram valores absolutamente essenciais, em qualquer ação no quadro da política internacional. Infelizmente, onde isso já vai. E antes, então, nem falemos.

Também a grande pressão internacional que nós conseguimos mobilizar, sobretudo a partir do momento do Massacre de Santa Cruz, embora tivesse havido muitos piores antes.

No livro, eu só falo das negociações em que participei, mas todos os meus colegas, em todas as embaixadas, promoviam e fomentavam as organizações não-governamentais de defesa dos Direitos Humanos que se ocupavam de Timor. E isso obviamente foi determinante. Há um momento que a Indonésia percebe que, se não resolve o problema de Timor, vai ter sempre ali um limite a nível internacional.

Penso que o Habibie [Jusuf Habibie, Presidente da Indonésia entre 1998 e 1999] - que era uma personalidade muito especial, não era um político, foi um acaso estar no lugar em que estava - percebeu que Timor estava a ser mais prejudicial que benéfico para a Indonésia. Então, pensou: já agora, vamos fazer uma ação que dê grande publicidade positiva à Indonésia.

Foi preciso acreditar durante as negociações que tudo iria correr bem, mesmo, por vezes, com a violência crescente em Timor. Não houve nenhum momento de arrependimento ou de maior apreensão nestes dois anos?

Houve momentos de apreensão horrível. Posso-lhe garantir. Os três responsáveis, o Presidente Jorge Sampaio, o primeiro-ministro António Guterres e o ministro [dos Negócios Estrangeiros] Jaime Gama devem ter tido também momentos de enorme angústia. Nós sabíamos que, fosse qual fosse o resultado, ia haver um surto de violência. Timor tinha um sistema violento em si. Portanto sabíamos que não era possível controlar. Mas foi uma angústia horrorosa. O momento em que o Presidente Habibie finalmente pede a intervenção militar é um momento, para mim, de um alívio brutal. Só quando lá chegaram as forças internacionais é que efetivamente pude descansar.

Estava a falar da “publicidade positiva” que o momento gerou para a Indonésia… Mas a Indonésia nem sempre conseguiu controlar as forças que tinha no terreno.

Isso é muito complicado. A Indonésia estava numa fase de transição e as Forças Armadas eram completamente contra o acordo. A questão tem várias nuances e há ali jogadas internas que nós não podíamos controlar.

Estive agora em Timor, fui convidado para o 20º aniversário do referendo. Falando com militares da ONU, eles diziam que, de facto, um dos problemas da altura era que os soldados indonésios se recusavam a atirar sobre as milícias porque eram amigos deles. Isso deve ter uma base de verdade, a que se acrescenta o facto de, politicamente, os militares não estarem a gostar da evolução interna que o país estava a ter.

Propôs aqui na apresentação a criação de um “Livro Branco” para explicar o processo de Timor. Acha que pode ser um case study para a diplomacia a nível internacional?

Não tenho dúvida que sim. É um caso perfeitamente ímpar, como dizia o ministro Jaime Gama, a mais implausível negociação diplomática portuguesa. Era praticamente impossível, em tão pouco tempo, chegar a este resultado.

Posso dizer, e disse-o já em artigos que escrevi e palestras que fiz, o processo conduzido pela diplomacia portuguesa é absolutamente exemplar, não cometemos nenhum erro. Fizemos tudo o que era necessário. Havia especulações da imprensa, sempre a achar que estávamos ali a tentar uma solução maltrapilha.

Isto também era um peso na nossa diplomacia. Nós éramos ameaçados pelos nossos maiores aliados, sobretudo na União Europeia. Faziam-nos a vida negra por causa de Timor. Nós estávamos sempre ali a bater-nos por causa de Timor.

Uma frase muito feliz do doutor Adriano Moreira explica que nós soubemos dar uma voz ao povo de Timor, sem a qual eles não teriam conseguido ter a expressão internacional que tiveram, e soubemos fazer tudo o que era preciso fazer em cada momento do processo. No momento em que as condições eram propícias, soubemos aproveitar essa oportunidade.

Portugal não deixou que a porta se fechasse completamente.

Exatamente. Aqueles encontros anuais com ministros que muita gente não percebia, que se dizia que não serviam para nada. Serviram para continuar a manter este ponto na agenda das Nações Unidas. Timor foi sempre um ponto na agenda das Nações Unidas. Se tivesse saído, nunca mais ninguém ia pensar em Timor.

Como mencionou, teve a oportunidade de visitar Timor recentemente. O que é que achou do país, passados 20 anos, em comparação com as visitas que tinha feito anteriormente?

Eu tinha lá estado duas vezes antes. Tinha lá estado antes do referendo. Dessa vez, como conto no livro, tive uma reação irracional quando vi a bandeira da Indonésia, tive um ataque de raiva, de indignação. O que foi estúpido, eu sabia que ia estar lá a bandeira.

E fui a seguir, depois de eles terem queimado tudo. Estava tudo queimado mas já não estava a bandeira da Indonésia.

Só lá voltei agora, 20 anos depois. Naturalmente que o país está muito melhor, a cidade foi reconstruída, há trânsito, uma vida, uma atividade sem paralelo. É um país em muitos aspetos exemplar. É considerado pelas instituições adequadas como uma das mais conseguidas democracias daquela zona do mundo, isso é notável.

É um país que tem condições de sustentabilidade. Tem o petróleo, que tem sabido gerir de forma muito sensata. Mas é um país que tem problemas. Tem problemas de emprego, tem problemas de educação, tem problemas complicados.

Quando eu fazia os briefings aos meus colegas, eles pensavam “patetas destes portugueses, passa-lhes pela cabeça que a Indonésia alguma vez vai deixar fazer seja o que for em Timor”. E perguntavam se eu achava que Timor era viável. Timor é muito mais viável que a maior parte dos países de África porque tem a vantagem que é uma ilha e tem ao lado países desenvolvidos: a Indonésia, que é um país muito mais desenvolvido que a maior parte dos países africanos, e a Austrália. Timor é um país que tem, apesar de tudo, condições geográficas que lhe são favoráveis. Esperamos que eles consigam singrar.

Olhando para a atualidade internacional, acha que algum país poderia olhar para o exemplo de como se resolveu a questão de Timor?

Absolutamente, sim. Acho que há uma deriva negativa das nações, do clima internacional e das relações entre os países. Era bom que olhassem para o que se fez em Timor. E que pensassem que o que se fez em Timor também resultou do facto de haver uma ordem ocidental, estabelecida pelos Estados Unidos, que os Estados Unidos estão em vias de destruir.

Seria ótimo que eles pensassem que essa ordem tinha mais vantagens e que a solução negocial é melhor que a guerra. Porque não há nada pior que a guerra. Quem esteve em situações de guerra, mesmo durante muito tempo, tem a noção que guerra e não guerra é o preto e o branco.
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