Dos populistas aos eurocéticos. Eleições em Itália inquietam a União

Em 2016, a Europa tremeu com o Brexit e a eleição de Donald Trump. Em 2017, o Velho Continente respirou de alívio com as vitórias agridoces de Emmanuel Macron e Angela Merkel. O ano de 2018 começa com Itália a votos, instabilidade política no horizonte e os movimentos populistas em crescimento.

Se Bruxelas é o coração da União Europeia, o que dizer de Roma? A capital italiana não alberga as grandes instituições europeias, mas foi ali que a aventura comunitária começou. A 25 de março de 1957, seis nações criavam a Comunidade Económica Europeia, antecâmara da União Europeia.

Em 2017, a data foi assinalada precisamente no mesmo local. Os 27 Estados-membros renovaram a fidelidade para com o projeto europeu, apesar da incapacidade em esconder as muitas diferenças.

Em 2018, Roma arrisca-se a ser mais sombria para a União Europeia. O país regressa às urnas para eleger a composição das duas câmaras do Parlamento que dará suporte ao futuro Governo italiano. As sondagens revelam que o eleitorado está fragmentado e que os movimentos populistas continuam a crescer, quer a extrema-direita, quer o Movimento Cinco Estrelas.

Entre os cenários possíveis, um apresenta-se como o mais preocupante para os diretórios europeus: uma coligação de movimentos eurocéticos, liderada pelo Movimento Cinco Estrelas e pela Liga. “Não sei se será o mais plausível. O Movimento Cinco Estrelas tem tido uma grande ambiguidade em termos de estratégia de alianças”, afirma o politólogo italiano Marco Lisi. O investigador da Universidade Nova de Lisboa nota ainda que “as posição antieuropeístas do movimento têm vindo a ser muito mais moderadas”.



A especialista em assuntos europeus Isabel Meirelles vê a chegada do Movimento Cinco Estrelas ao poder como o pior cenário. “Seria um partido que não cooperaria com a União Europeia. É um partido que se puder até poria Itália fora desta organização que deu tanta paz, prosperidade e desenvolvimento à Europa”, nota a advogada.

O crescimento dos movimentos populistas é uma das faces da perda de poder dos partidos tradicionais italianos que impulsionaram a construção europeia. “Os italianos não são muito europeístas. Já foram mais, agora são muito menos porque a Europa é explorada em Itália como o alvo de todas as responsabilidades”, acredita o investigador do ISCTE Goffredo Adinolfi.

A crise económica trouxe um novo padrão de apoio à União Europeia. Se no princípio do século a maioria dos italianos dizia confiar no projeto, o mesmo não acontece atualmente. Os dados do Eurobarómetro indicam que desde 2011 que são mais os italianos que tendem a não confiar na União Europeia do que os que têm tendência a confiar. Apesar de a maioria dos italianos apoiarem o euro, o apoio à moeda única caiu fortemente: de 81 por cento em 2001 para 54 por cento (2016).


“Há muitas forças que pensam que Itália deixou de crescer desde que entrou no euro e associam as duas dinâmicas. Também não percebem o quanto seria importante uma união mais forte”, explica o investigador em ciência política do ISCTE. Para Goffredo, há um “mal-estar que, em vez de se concretizar em pedir mais redistribuição do rendimento, concretiza-se numa vontade de isolamento”.

Também a gestão da crise migratória leva os italianos a questionar a União Europeia, não fosse o país um dos mais afetados pela crise de refugiados. O tema da imigração tomou de assalto a campanha e domina o debate político. “A Europa é vista como um sistema muito distante, os emigrantes são vistos como quem rouba trabalho e invade o espaço. Em vez de pedirem mais direito ou menos precariedade, seguiram este caminho”, lamenta o investigador italiano.

Goffredo Adinolfi vê o racismo e a xenofobia a marcar a campanha eleitoral e atribui a culpa às elites políticas, em especial ao líder do partido de extrema-direita Liga. “O Salvini tem um discurso que, de acordo com a lei italiana, deveria ser julgado pelos comentários que faz sobre os estrangeiros. Assim, também os cidadãos se sentem legitimados a fazer este discurso”, afirma.

O cenário contrasta com o caso português. Apesar da crise, da austeridade e da intervenção da troika, a extrema-direita e o tema da imigração não conseguem impor-se na agenda e junto do eleitorado. Para Adinolfi, esta tendência não significa que o povo português seja mais tolerante. O discurso político e mediático é que é diferente.

“As sondagens indicam que há uma grande desconfiança em relação aos estrangeiros e aos partidos tradicionais e que esta desconfiança não é menor do que noutros países europeus. Mas isto não se traduz no voto” porque “o assunto não é explorado”, afirma este investigador que tem analisado os sistemas políticos italiano e português e a transição dos dois países para a democracia.


Que impacto na Europa?
Na condução do projeto europeu, Roma não é Berlim ou Paris. Não é um dos motores, mas tem o peso que não têm Atenas ou Lisboa. Itália é um dos países fundadores da União Europeia, a sua quarta maior economia e um dos contribuintes líquidos do Orçamento comunitário.

Na irmandade do sul da Europa, Itália apresenta-se como o irmão rico mas que não escapa aos problemas do bloco, nomeadamente no desemprego, na banca e na dívida pública.

Tem uma dívida que representa 132 por cento do seu Produto Interno Bruto. São 2.218.471,2 milhões de euros, a maior da Zona Euro e mais de 20 por cento de toda a dívida pública dos 19.

“Estas eleições vão definir se a União Europeia continua num ponto de equilíbrio ou não. O Governo que sair destas eleições vai ser determinante para se perceber o futuro da Europa em todos os desafios, designadamente do Brexit”, sublinha Isabel Meirelles.

A advogada traça um quadro negro para o caso de as forças populistas chegarem ao governo. Nota que, na Grécia, o Syriza “foi vergado” e hoje “até se parece acomodar bem às regras” mas que o mesmo pode não acontecer.

“Pode, no limite, haver um referendo que pergunte aos italianos, tal como aconteceu no Reino Unido, se querem permanecer na União Europeia ou nem tanto”, avisa. O cenário dependerá sempre do rumo que estes partidos decidirão tomar perante discursos muito ambíguos. Depois de ter defendido um referendo ao euro, o líder do Movimento Cinco Estrelas afirmou recentemente que o partido é “pró-europeu”.

No quadro atual, a especialista em Assuntos Europeus acredita que o regresso ao poder do Partido Democrático seria a melhor solução para a União Europeia. “É o único partido que é manifestamente a favor da Europa, do euro e dos aspetos de integração. Todos os outros são eurocéticos ou mesmo antieuropeus”, explicita a especialista em assuntos europeus Isabel Meirelles.

Neste complexo tabuleiro político, também Sílvio Berlusconi não merece a confiança de Meirelles. Foi somando contradições em relação ao projeto europeu ao longo da sua carreira. Defende a introdução de uma moeda doméstica em Itália, a utilização do euro no comércio internacional e a deportação de 600 mil migrantes ilegais.

É líder e fundador de um dos partidos que construiu a Itália europeia, de onde é oriundo o atual presidente do Parlamento de Estrasburgo. António Tajani é mesmo a escolha de Sílvio Berlusconi para primeiro-ministro. Apesar disso, Il Cavaliere não se inibe de ser crítico de Bruxelas, em especial quando está na oposição, e de fechar alianças com a extrema-direita.

“É um homem superiormente inteligente que foi aprendendo com o seu percurso e os seus erros. Neste momento está muito mais moderado, maduro e, diria mesmo, mais perigoso. Continua com posições extremadas mas de uma forma mais diplomática”, afirma Isabel Meirelles.

Apesar da incerteza que o voto em Berlusconi pode representar, o regresso da Força Itália ao poder pode ser um “mal menor” quando comparado com opções mais radicais. Um cenário que não se verifica só na Península Itálica.

“Esperamos que as extremas-direitas populistas e xenófobas não ganhem naqueles países e, a terem algum protagonismo, que seja em coligação com partidos mais moderados para que as dificuldades possam ser aplainadas e nunca possa haver um bloqueio de qualquer país em decisões fundamentais para o futuro da Europa”, afirma a advogada que assumiu recentemente a vice-presidência do PSD.

Para Isabel Meirelles, a Europa encontra-se numa “lógica do mínimo denominador comum”. A euforia dos anos 80 passou, o caminho para o federalismo “parece quase uma miragem”. “A Europa tem de ser repensada” e “temos de seguir novamente o caminho dos pequenos passos e negociar qualquer decisão que belisque as soberanias nacionais com muito cuidado”, aconselha a comentadora.

No calendário eleitoral de 2018, Itália não está sozinha. Multiplicam-se as eleições a leste, nomeadamente na Eslovénia e na Hungria de Vitkor Orbán. É a antecâmara para 2019, ano em que os europeus votam a composição do novo Parlamento de Estrasburgo.