É a mais antiga prática de mumificação e vem do sudeste asiático, onde os mortos eram fumados

Há mais de dez mil anos, as comunidades humanas secaram e fumaram os cadáveres dos seus ancestrais. A investigação arqueológica de dezenas de enterramentos antigos encontrados - na China, Filipinas, Laos, Tailândia, Malásia e Indonésia - revelou que esqueletos encontrados em posição fetal foram sujeitos a uma prática funerária rigorosa antes de serem enterrados.

Carla Quirino - RTP /
Enterramentos hiperflexíveis com ossos parcialmente queimados do sul da China e da Indonésia. (A e B) Estudo: "Evidências mais antigas de mumificação por secagem e fumadas: há mais de 10.000 anos no sul da China e sudeste da Ásia"

A partir de contextos funerários arqueológicos, datados entre 12 mil e quatro mil anos de idade, os investigadores documentam a prática contínua de mumificação realizada por via de secagem dos corpos como se fossem fumados.

Ao investigarem 54 enterros pré-neolíticos de 11 sítios arqueológicos, localizados ao longo de uma ampla região que abrange o sudeste da Ásia e o sul da China, os cientistas observaram também que os restos humanos apresentavam-se "flexionados em posição fetal e muito comprimidos e às vezes com indicações de desmembramento post-mortem”, diz o estudo.

"O ato de fumar os corpos, provavelmente, carregava significados espirituais, religiosos ou culturais que iam muito além de simplesmente retardar a decadência [dos restos mortais]”, explicou Hsiao-chun Hung, investigador da Universidade Nacional Australiana e principal autor do estudo, citado na publicação Live Science.
Esqueletos “hiperflexionados"
O conjunto de enterramentos estudados apresentava uma disposição do esqueleto muito “hiperflexionado” ou contorcido onde as pernas estavam dobradas além do limite. Os restos mortais encontrados estavam também em posição fetal com as ossadas muito comprimidas. Na maioria, os esqueletos apresentam-se completos e mantém a posição anatómica original.

Exemplos de enterros humanos do Holoceno Primitivo e Médio do sul da China. A figura mostra seis enterros humanos de Huiyaotian (A,B e C). Em Nanning e Liyupo (D, E e F) em Longan, ambos locais de concha localizados na Região Autónoma de Guangxi Zhuang. Todos os indivíduos estão em posições flexionadas, com várias exibindo posturas hiperflexivas (A e E: masculino, B – D e F: feminino) | Estudo: "Evidências mais antigas de mumificação por secagem e fumadas: há mais de 10.000 anos no sul da China e sudeste da Ásia"

As pernas dobradas firmemente contra o corpo “era a característica mais típica dos enterros pré-neolíticos, particularmente no sul da China e no sudeste da Ásia”, referiu Hung.

As posições dos membros revelavam-se tão extremas que os investigadores consideraram que seria improvável que os corpos tivessem ficado assim sem uma “intervenção externa”, sugerindo mesmo que os "corpos teriam sido manipulados antes de serem enterrados", descreveram os autores do estudo.
Sinais de corpo fumado

Depois de os corpos serem bem dobrados em posições de agachamento foi realizado o exame de carbonização nos esqueletos, que mostrou sinais de que eles tinham sido expostos a calor baixo durante longos períodos de tempo, o que teria permitido secar e preservar os restos mortais.
 
Assim, nestes enterros do sudeste Asiático, os arqueólogos e antropólogos descobriram que os esqueletos apresentavam evidências de zonas queimadas. Porém, observaram também que não se verificava qualquer sinal de fogo nas sepulturas, o que sugeria algum tipo de tratamento ritual do corpo que incluía fogo e fumo antes da deposição.

Para compreender melhor e avaliar se os ossos foram expostos ao calor, os investigadores usaram uma técnica não destrutiva - difração de raios-X - que permite estudar a microestrutura interna de um material e fazer uma espectroscopia infravermelha.

Assim, concluíram que muitos dos esqueletos apresentavam sinais de aquecimento e descoloração de baixa intensidade da fuligem, em vez de evidências de combustão direta, como uma cremação.

Estas evidências sugerem que os caçadores-recoletores praticavam um perceito mortuário especializado que envolvia expor um cadáver a fumo e a um calor não direto, por longos períodos durante incêndios de baixa temperatura.

Os restos osteológicos com este padrão foram encontrados e associados à prática desenvolvida em comunidades pré-agrícolas no sul da China e no sudeste da Ásia, explica o estudo.
Proposta

Secar com recurso a fumo tornando os elementos orgânicos fumados é uma técnica conhecida historicamente de alguns grupos indígenas australianos e ainda usada por comunidades dentro de Papua Nova Guiné, argumentam os investigadores no estudo agora publicado na revista PNAS

Ao verificaram certas semelhanças entre as posições agachadas dos esqueletos estudados e os dos testemunhos modernos mumificados com a prática da secagem com fumo, os autores desta investigação questionaram-se se os antigos enterros hiperflexionados também poderiam ter sido fumados.

Com base em achados arqueológicos e paralelos etnográficos destes locais como Papua, o presente estudo propôs um cenário para a realização de mumificação pré-histórica como se de um fumeiro se tratásse.

A ilustração representa o processo de mumificação em várias etapas.

(A) Preparação para o ritual de fumar. Os corpos eram inicialmente manipulados para atingirem uma posição hiperflexível; (B) Processamento – o cadáver poderia ser amarrado (como mostrado em A) ou desmembrado, como mostrado em B, com base num exemplo moderno em Papua Nova Guiné, enquanto colocado acima de um fogo de baixa temperatura. 

Nos exemplos desta investigação sobre a mumificação de caçadores-recoletores, todos os indivíduos foram amarrados (A e B); Em C, o tratamento pós-fumo – a múmia defumada é transferida para uma residência, uma cabana especialmente construída, um abrigo de rocha ou uma caverna. 

Em alguns casos, no entanto, a múmia decaiu devido à exposição prolongada ao ar livre. Como visto no exemplo apresentado no estudo, a cabeça e o corpo separaram-se.

Em D, realiza-se o enterro final – a múmia defumada acaba por ser enterrada. A maioria dos restos mortais estava intacta no momento do enterro. Nos casos em que os corpos se tivessem deteriorado esses restos terão sido rearranjados no espaço funerário.
Reflexo de amor e memória
Como as antigas populações de caçadores-recoletores descobriram que fumar um corpo humano poderia preservá-lo “continua a ser um mistério fascinante e estimulante”, sublinhou Hung.

"Também não podemos dizer com grande certeza se fumar o corpo foi realizado pela primeira vez com o objetivo de preservá-lo”.

É possível que os povos antigos tenham descoberto como fumar acidentalmente, como um subproduto de algum tipo de prática ritual, ou que como fumar carne animal primeiro e depois aplicá-lo a humanos mortos.

“O que está claro é que a prática prolongou a presença e preservação visível dos falecidos, permitindo que os ancestrais permaneçam entre os vivos de maneira tangível, um reflexo pungente do amor, memória e devoção humanos duradouros”, acentuou Hung.

E acrescentou: “Acreditamos que a tradição reflete um impulso humano atemporal – a esperança duradoura, desde os tempos antigos até o presente, que as famílias e os entes queridos possam permanecer ‘juntos’ para sempre, seja qual for a forma que a união possa assumir”.

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