Emigrar. A solução que pode extinguir os cristãos no Médio Oriente após 2.000 anos

A pressão sobre as comunidades cristãs no Médio Oriente para emigrar tem estado a agravar-se, pela insegurança e pela falta de oportunidades, em países onde há poucas décadas eram parte integrante da sociedade.

Graça Andrade ramos - RTP /
Uma mulher cristã siríaca reza durante a Missa de Natal na Igreja Ortodoxa siríaca de Santo Efraim, em Qamishly, Síria, 25 de dezembro de 2017 Reuters

Iraque, Síria, Líbano. Em pouco mais de uma década, comunidades com dois mil anos ficaram em risco de desaparecer, devido à guerra, à perseguição religiosa e, agora, à crise económica.

O episódio mais recente desta pressão ocorreu a 4 de agosto de 2020. Uma explosão destruiu o porto de Beirute, capital do Líbano e deixou inabitáveis milhares de casas e de edifícios.

Passada a primeira onda de solidariedade, dois meses depois famílias inteiras continuam sem abrigo, à beira do Inverno. Muitos entre os cristãos começam a pensar em emigrar.

“Com a deterioração da situação política e financeira nos últimos anos, muitos cristãos falam em sair do país, embora com o coração apertado”, afirma Reinhard Backes, chefe de projetos da Fundação AIS, Ajuda à Igreja que Sofre, após visitar o Líbano em trabalho, no início de setembro.

“O encontro com Georges, pai de quatro filhos, que teve de deixar o Líbano, emigrando para o Dubai porque já não conseguia sustentar financeiramente a sua família, foi de partir o coração”, referiu Backes, num balanço da visita.
“Isto é demasiado. O país está em grave declínio económico desde há anos e as pessoas já lutavam para sobreviver antes da explosão".
A comunidade fragilizada desempenha, apesar disso, um papel crucial na complexa realidade de toda a região.

Os cristãos compõem aproximadamente 40 por cento da população libanesa, com uma diáspora entre oito e 14 milhões. Em números absolutos, a população cristã libanesa fica apenas atrás das do Egito e da Síria. A sua influência na vida social e política funciona como um íman.

“O Líbano é o último país do Médio Oriente com uma presença substancial de cristãos”, sublinha Reinhard Backes. “Tornou-se também um local de refúgio para os cristãos de outros países da região, como a Síria ou o Iraque”. Que agora, ao lado dos seus irmãos libaneses, voltam a questionar o futuro.
De 35% para 5% em 100 anos
A maioria da cristandade do Médio Oriente agrupa-se nas Igrejas Ortodoxas Orientais, especialmente proeminentes na Síria, Palestina/Israel, e Jordânia, na Igreja Maronita católica de rito oriental, no Líbano, e na Igreja Copta, no Egito. Comunidades menores, de católicos do rito romano, de assírios e de protestantes, espalham-se pelo Levante, Iraque e Norte de África.

Há pouco mais de 100 anos, cristãos de diversas denominações compunham cerca de 35% do tecido étnico e religioso da região. Atualmente são apenas cinco por cento da população. Apesar de estarem a desaparecer, os cristãos mantêm-se o segundo maior grupo religioso do Médio Oriente, com mais de 20 milhões de membros.

Dados divulgados entre 2018 e 2019 não deixavam, já então, margem para dúvidas quanto ao seu declínio naquela zona do globo.

Ao contrário do que sucedia há um século, “a situação atual vê as comunidades cristãs, desde o Crescente Fértil ao Levante e às planícies da Anatólia, a desaparecer rapidamente, se não desapareceram já”, referia um artigo publicado em abril de 2019 no jornal New Europe, do Parlamento Europeu.

“Vagas sucessivas de guerras, genocídio, emigração em massa, limpeza étnica, políticas oficiais discriminatórias e o advento do Islão radical, combinaram-se para destruir a florescente comunidade cristã do Médio Oriente, ajudando a transformar a população árabe, de um povo multiconfessional numa comunidade de quase só muçulmanos, sunitas ou xiitas”, acrescentava.

Em maio do mesmo ano, um relatório sobre perseguição religiosa encomendado pelo Governo britânico e dirigido pelo Bispo de Truro, o reverendo Philip Mounstephen, revelava que os cristãos eram a comunidade religiosa mais perseguida do mundo sendo que o fenómeno estava a agravar-se.

"Nalgumas regiões, o nível e a natureza da perseguição aproximam-se da definição internacional de genocídio, tal como é entendida pela ONU", referiu então o relator, para quem o "politicamente correcto" impedia trazer a questão à luz do dia.

De então para cá, nada mudou. Alguns autores referem que os cristãos são "os judeus do século XXI", referindo-se ao holocausto nazi. E se a perseguição, por exemplo na Nigéria e páises limítrofes, por vezes chega aos jornais devido à escala das atrocidades e dos raptos, em muitos países do Médio Oriente a situação está a piorar e a agravar-se sob um manto de silêncio.

Emigrar tornou-se a única solução aparente para milhares de cristãos.
"Isto é o fim"
A insegurança devido à hostilidade de fundamentalistas e à diminuição dos números é um dos fatores mais importantes para a decisão de partir ou de ficar. Exemplo disso é o caso do Iraque.

Em 2003 viviam neste país 1.5 milhões de cristãos, cerca de cinco por cento da população. Em 2020, são apenas cerca de 120 mil. Um declínio de 92 por cento após 16 anos de perseguição e de fuga.

“As pessoas estão cansadas. Isto é o fim do cristianismo em Mosul. Esta não é a primeira vez que as pessoas foram obrigadas a fugir. Dentro de cinco anos, já não haverá cristãos aqui”, vaticinou um residente da cidade aos responsáveis por um estudo encomendado pela AIS.

Intitulado Vida depois de ISIS: os novos desafios dos cristãos no Iraque, realizado sob a direção de Xavier Bisits, o estudo revela que 69 por cento dos inquiridos pensa emigrar por razões políticas e de segurança. Razões de família (17 por cento), razões económicas (11 por cento) ou outras (três por cento) ocupam uns distantes lugares secundários.

Descendentes do Império Assírio, cristão desde o século IV da nossa era, os cristãos iraquianos, do rito assírio, vivem maioritariamente desde há centenas de anos nas planícies de Nínive, no norte do Iraque.
Sob o Governo de Saddam Hussein, em finais do século XX, alguns aventuraram-se até Bagdade e Mosul, onde formaram comunidades consideráveis. Milhares de outros emigraram definitivamente para o exterior.

Uma série de ataques de cariz religioso no Iraque, entre 2006 e 2008, incluindo assassínios e dezenas de atentados contra igrejas, levaram alguns a regressar às origens. Dos cerca de 100 mil cristãos das planícies de Nínive, em 2014, cerca de 13 por cento eram deslocados de Mosul, de Bagdade, de Sinjar ou de Bassorá, de onde tinham sido expulsos pelos antecessores do ISIS.

Enquanto controlou o poder, após a sua conquista-relâmpago do território em 2014, o grupo islamita Estado Islâmico do Iraque e da Síria, ISIS na sigla em inglês, perseguiu ferozmente as minorias religiosas e étnicas das planícies do norte iraquiano, destruindo nomeadamente locais de culto e mosteiros, e raptando ou assassinando milhares de pessoas.

Milhares de cristãos assirios pediram auxílio em fevereiro de 2015, em Beirute, Líbano, após o rapto de centenas de pessoas no Iraque, pelo ISIS Foto: Reuters


As vítimas sobreviventes não esquecem. E continuam a ter medo.
Futuro: emigração
Mesmo depois da derrota do ISIS, em 2017, as comunidades continuaram a diminuir, refere o estudo da AIS. Dos 102 mil cristãos contabilizados em 2014, restam hoje 36 mil. A maioria emigrou e sondagens demonstram que os números poderão descer aos 23 mil nos próximos cinco anos.

Uma quebra de 80 por cento que irá mudar o seu estatuto de "vulnerável" para "em perigo de extinção".

De acordo com os resultados do inquérito, 57 por cento dos cristãos da região, na sua maioria homens jovens, já pensou emigrar, sobretudo por razões de segurança. Trinta e seis por cento esperam deixar o Iraque nos próximos cinco anos. E uma imensa maioria, 64 por cento, já tem pelo menos um familiar direto a viver no estrangeiro, um enorme incentivo para se lhes juntar. A Austrália é o destino preferido.

O esforço das igrejas locais, apoiadas por ajudas externas, assim como pela extrema fidelidade dos cristãos, tem de alguma forma conseguido mitigar o êxodo, através da reconstrução de casas, de escolas e de empresas. Os mais novos nem assim se têm convencido a ficar.

“Há muitos jovens que se casam e não têm filhos porque querem emigrar”, refere um habitante de Baghdeda. Em apenas três meses de verão, a população da sua cidade diminuiu de 24 mil para 21 mil, período coincidente com as férias escolares.

“Ainda me lembro do ISIS e do que sucedeu”, refere outro. “Metade dos jovens ir-se-á embora nos próximos dois anos. Vão fazer limpezas, ser caixas de supermercado, recomeçando tudo a partir de baixo. É terrível”, lamenta um terceiro.
"Estamos pior agora"
na Síria, tal como no Líbano, a maior ameaça é a penúria e a ausência de futuro.

“Estamos pior do que há dois ou três anos”, afirmava em entrevista a sete de outubro, o Padre Hugo Alaniz, do Instituto do Verbo Encarnado, desde a sua paróquia da Assumpção, em Alepo. As armas calaram-se, e com o seu silêncio desapareceu muito do apoio internacional. A população síria vive um tempo negra, marcada por uma economia praticamente destruída e que não oferece quaisquer perspetivas.

“O que mais preocupa é que a economia está morta. Não há trabalho, os salários são muito baixos, o futuro é incerto, os jovens não conseguem trabalhar e assim planificar as suas vidas, sonhar. É muito difícil”, refere o Padre Alaniz, entrevistado pelo programa Perseguidos mas não esquecidos da Fundação AIS, na Rádio Maria, em Espanha.

Desde a imposição de novas sanções à Síria, “nada mais pode ser importado ou exportado”. “Temos comida, o essencial, mas faltam muitas coisas.” É o caso, por exemplo, “de certos medicamentos. Aqui é impossível obtê-los”, diz o Padre Hugo. “É algo que faz sofrer as pessoas no dia-a-dia”.

Todos pensavam que a vida iria melhorar com o fim da guerra, mas não. “Estamos pior por causa da situação económica”, afirmou o padre. “As aulas começam na próxima semana, a maioria das crianças da minha paróquia nem tem sapatos. Hoje em dia, até os filhos de médicos e de engenheiros passam por muitas dificuldades”.

Alepo é uma das cidades berço do cristianismo no Médio Oriente, e a cidade mais cristã da Síria até há 10 anos. A emigração, primeiro, e a guerra civil, depois, acabaram com esse estatuto.

Não só entre 300 mil a 900 mil homens cristãos abandonaram o país em 2011, para evitarem ser recrutados para as forças armadas sírias. Outros preferiram integrar as milícias lideradas pelos curdos contra o grupo Estado Islâmico na Síria.

Orações pelos cristãos perseguidos no Iraque em 2014, em Amã, Jordânia Foto: Reuters
Dar esperança
Anos de guerra, de bombardeamentos e de combates destruíram cidades inteiras e redes de abastecimento na Síria. A derrota do ISIS e acordos para dominar outras milícias permitiram estabilizar a situação, e alguns cristãos têm regressado, sobretudo à cidade de Homs.

A falta de oportunidades continua a afastar a maioria.

No último census realizado no país, há mais de 50 anos, os cristãos eram cerca de 1.2 milhões, um pouco menos do que 15 por cento da população. Desde então, só existem estimativas e estas calculam que 11 por cento dos sírios sejam atualmente cristãos.

Os responsáveis das igrejas locais apostam na solidariedade externa para voltar a construir as suas paróquias e dar uma esperança de futuro aos seus fiéis, fixando-os. Reinhard Backes ganhou alento ao ver a resiliência dos jovens libaneses católicos.

“Todos eles perderam amigos durante a explosão e conhecem pessoas que perderam tudo”, explicou Backes, acrescentando ser “inspirador” o exemplo desses jovens que se mobilizaram para “ajudar os mais afetados pela explosão, limpando as ruas, etc”.

“Os cristãos libaneses são muito respeitados na sociedade, as escolas cristãs são muito apreciadas por pessoas de todas as crenças. São uma ponte entre os diferentes partidos do país”, afirmou ainda Backes.

É nosso dever dar-lhes uma nova esperança”, referiu.
PUB