Entrevista ao fotojornalista João Silva. "Somos a voz dos sem voz"

por António Mateus - RTP
"Somos a voz dos sem voz e as testemunhas de algo que de outra forma poderia ser ocultado, se não fossem profissionais como nós" RTP

Foi a força interior de uma menina angolana mutilada que serviu de pilar a João Silva, quando este perdeu ambas as pernas ao acionar um engenho explosivo artesanal, durante uma reportagem no Afeganistão, em 2010, ao serviço do jornal The New York Times. Em entrevista ao programa Olhar o Mundo, o fotojornalista português, radicado na África do Sul, revela a motivação que lhe permitiu sobreviver a quase uma centena de cirurgias e retomar a atividade de repórter em cenários complicados.

Como será o caso já no próximo mês, adiantou, da campanha eleitoral sul-africana na sempre complicada provincia do Kwazulu-natal.

João Silva esteve esta semana em Portugal a convite da Estação Imagem, como um dos oradores principais do maior evento anual de fotojornalismo no nosso país, à margem do qual concedeu uma entrevista exclusiva à RTP.

No dia em que as Nações Unidas anunciaram que, pela primeira vez no Afeganistão, o número de vítimas mortais de forças governamentais e internacionais, aliadas do executivo de Cabul, ultrapassou (no primeiro trimestre deste ano) o de atingidos por talibãs e outros opositores ao atual regime, João Silva "regressou" ao país pelo qual afirma ter-se "apaixonado" e onde, nas suas palavras, "por ironia" perdeu ambas as pernas.

"É um povo muito complexo e não um mesmo grupo étnico ou religioso. Um caldeirão onde cada um tem a sua agenda", sublinhou. "Tal como as forças externas, os paquistaneses, os americanos, os russos, todos têm uma peça naquele jogo".

António Mateus, Pedro Teodoro - RTP

"O Afeganistão sempre foi um país com dificuldade em aceitar forças estrangeiras no seu território. Sempre foi assim desde os anos de Alexandre o Grande. E a religião puxa-lhes a força de lutar contra todos os que não pertencem lá. A terra é deles. Nunca vão aceitar outra realidade", acrescentou.

Reconhecido pelos seus pares como um dos repórteres fotográficos de guerra mais conceituados do mundo, João Silva sublinha o caráter peculiar de um país que visitou profissionalmente com regularidade, desde 1994, até ali ficar mutilado a 23 de outubro de 2010.
"É um dos mais refinados fotojornalistas de guerra à superfície da Terra" - Bill Keller, antigo diretor do New York Times.

"A primeira vez que visitei o país como jornalista foi em 1994, durante a guerra civil em 1994. Era como se tivesse viajado para um tempo diferente, um tempo bíblico, mas onde havia blindados", acentuou.

"Foi uma coisa muito impressionante. No ano a seguir deixou de ser possivel trabalhar em ambos os lados do conflito e agora é impossivel fazê-lo de todo. Ainda estão mais radicais. fazer reportagem com os talibãs é muito complicado, porque mesmo que haja um comandante que dê o OK, eu protejo-te há sempre a possibilidade de outro comandante entrar nessa mesma área e decapitar-te".

"Foi exactamente isso que aconteceu a vários amigos meus", revelou João Silva.

Confrontado com elogios de diversos companheiros de linha da frente, incluindo o diretor do New York Times à altura do seu acidente, Bill Keller, descrevendo-o como um exemplo de talento, coragem, generosidade e respeito humano, João Silva assume outro dos créditos que lhe são imputados: a humildade. "[Na cobertura do bombardeamento do hospital de Bagdade], enquanto alguns repórteres mais jovens trabalhavam agressivamente, a pisar tudo à sua volta, o João fotografava de forma respeitosa, procurando não perturbar os familiares de vítimas. Fotografava mas como um cirurgião. É o mais corajoso de todos nós, mas também o mais cortês, o mais respeitador dos outros" - Stephanie Sinclair, Agência VII Photo.

"Faço o que faço, o melhor que posso", reage, visivelmente desconfortável com os elogios. "Tenho a paixão pelo que faço, é claro, e acredito que os que fazemos como profissionais é muito importante para a sociedade em geral; somos a voz dos sem voz e as testemunhas de algo que de outra forma poderia ser ocultado, se não fossem profissionais como nós".

Após viajar no tempo, ao acidente ocorrido em Arghandab, Afeganistão, quando acompanhava uma patrulha apeada da 4ª Divisão de Infantaria do exército norte-americano, João Silva revive a importância que teve o exemplo de uma menina que ele antes fotografara, mutilada, em Angola.

"Marcou-me a força que ela tinha. Eu era um adulto com uma máquina e ela a suposta vítima, mas que afinal não o era. Vim a compreender, mais tarde, que ela não era vítima nenhuma. Tinha aquela força....o olhar dela era quase um desafio", recordou. "Sim, tinha perdido uma perna mas não a sua humanidade, a força de coninuar".

"Nesse momento pensei que se calhar estava enojada comigo, por estar a pôr-me à frente dela com a máquina fotográfica", prosseguiu. "Mas não era isso. Era um desafio, eu estou aqui. E eu só vim a perceber isso quando fiquei ferido".

"Como sabes António, nunca desisti, Nunca aceitei a derrota. Cheguei a estar muito perto de morrer. Os primeiros dias foram muito graves, estive quase dois anos hospitalizado; 47 cirurgias no primeiro ano e muitas mais depois disso. Tive de lutar e houve tempos escuros em que uma pessoa está tão magoada que só quer que tudo aquilo acabe".

"Mas a força do olhar dela, aquela posição de desafio, a olhar para mim....pensei muito nela naquele período e isso também me ajudou a passar aqueles tempos que eram mais complicados, tal como, é claro, o amor à minha família. Eu queria manter-me vivo para eles".
"Resistir ao Idai"

Pela primeira vez em Portugal, trabalhos selecionados de nove fotojornalistas lusos enviados para cobertura do ciclone Idai, que devastou Moçambique e espalhou também a destruição e morte no Zimbabué, Zâmbia e Malaui, foram reunidos numa mostra conjunta.



Sob o título Resistir ao Idai, a organização do Prémio Estação Imagem 2019, Coimbra, promove desde dia 23 e até 21 de junho, entre outras iniciativas, uma mostra de trabalhos dos fotojornalistas Luis Barra, André Catueira, Tiago Miranda, João Porfírio, Leonel de Castro, Miguel Lopes, Tiago Petinga, Daniel Rocha e António Silva.
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