EUA. Polícia usa mais força contra manifestantes de esquerda

por Inês Moreira Santos - RTP
Samuel Corum - EPA

Depois de, na semana passada, o mundo assistir à invasão do Capitólio e à atuação dos polícias e das forças de segurança face aos manifestantes pró-Trump, muitas vozes críticas indignaram-se com a disparidade óbvia da resposta policial noutros protestos. De acordo com dados de um novo relatório, há três vezes mais probabilidade de a polícia norte-americana usar aforça contra manifestantes de esquerda do que contra manifestantes de direita.

As imagens dos apoiantes de Donald Trump a tomarem de assalto o Capitólio - escalando paredes, partindo janelas, destruindo portas, vandalizando escritórios e invadindo as galerias da Câmara e do Senado - circularam por todo o mundo, pelas televisões ou nas redes sociais. Não foi a primeira vez que assistimos a alguma manifestação ou atos de violência, mas a maioria não teve dúvida de que o tipo de confronto com estes manifestantes e a atuação da polícia foi bastante diferente da que teve em protestos recentes.

Este tumulto aconteceu poucos meses depois de a polícia norte-americana ter disparado, espancado, usado gás lacrimogéneo e detido manifestantes negros que protestavam pacificamente contra a brutalidade policial.

Os dados da US Crisis Monitor revelam, agora, que nos últimos 10 meses, as várias forças de segurança dos EUA usaram gás lacrimogéneo, spray pimenta, balas de borracha e força física numa proporção muito maior nas manifestações do Black Lives Matter do que em protestos pró-Trump ou outras manifestações de direita.

Além disso, segundo os analistas os polícias também estavam mais propensos a usar a força contra os manifestantes de esquerda, quer os protestos continuassem pacíficos ou não.

"Quando são manifestantes brancos a cometerem atos de violência, a polícia fica parada", disse à National Geographic Jeralyn Cave, assessora de comunicação do Advancement Project, uma organização nacional de direitos civis e justiça racial. "E quando os organizadores são negros ou hispânicos e exigem justiça, a polícia é violenta e ataca os manifestantes".

"O que se passou no Capitólio na quarta-feira é um verdadeiro testemunho do poder branco na América", acrescentou.
Violência policial nos protestos pacíficos
Estas estatísticas, com base nas respostas da polícia em mais de 13 mil protestos nos EUA desde abril de 2020, mostram uma disparidade clara na forma como as forças de segurança responderam à onda histórica de protestos Black Lives Matter contra a violência policial, em comparação com as manifestações organizadas por apoiantes de Trump.

A invasão do Capitólio revelou um enorme contraste na forma como a polícia respondeu no verão passado, quando milhares de manifestantes negros saíram à rua por todo o país após as mortes de George Floyd, Ahmaud Arbery e Breonna Taylor. As imagens desses protestos mostravam a polícia com equipamento anti-motim completo a espancar os manifestantes e a usar gás lacrimogéneo para dispersar as multidões, contrariamente ao que aconteceu na semana passada quando o Congresso e o Senado foram invadidos por apoiantes de Donald Trump.

Os investigadores do US Crisis Monitor, um banco de dados criado por analistas de Princeton e do projeto Armed Conflict Location and Event Data ( ACLED ) - uma organização sem fins lucrativos -, descobriram que a grande maioria dos milhares de protestos nos Estados Unidos em 2020 foram pacíficos, e que a maioria dos protestos tanto de esquerda como de direita não encontraram resposta violenta por parte das autoridades.

A polícia usou gás lacrimogéneo, balas de borracha, espancamentos com cassetetes e outras formas de violência contra os manifestantes em 511 protestos de esquerda e 33 de direita desde abril
, de acordo com os dados atualizados divulgados esta semana.

"É realmente inacreditável", comentou Roudabeh Kishi, diretora de pesquisa e inovação da organização sem fins lucrativos ACLED. Mas "também não é nada surpreendente".

Isso porque, como explica a investigadora, as discrepâncias que vimos no Capitólio são apenas um exemplo de uma tendência que a equipa do ACLED tem acompanhando há meses, enquanto colhe dados sobre as interações de manifestantes e polícias nos EUA.

"Vemos uma resposta diferente na direita", lamentou.

Segundo o Guardian, em manifestações de esquerda, registou-se violência policial em cerca de 4,7 por cento dos protestos, enquanto que em manifestações de direita, foi cerca de 1,4 por cento - o que significa que há três vezes mais probabilidade de as forças de segurança norte-americanas usarem a força contra protestos de esquerda do que contra protestos de direita.

A disparidade na resposta da polícia só aumentou depois de comparados os protestos pacíficos da esquerda com os protestos de direita.

Analisando o total de protestos em que os manifestantes não se envolveram em qualquer tipo de violência ou vandalismo, os polícias eram cerca de 3,5 vezes mais propensos a usar a força nos protestos de esquerda do que nos protestos de direita. Houve cerca de 1,8 por cento de protestos pacíficos de esquerda e apenas meio por cento dos protestos pacíficos de direita onde foi usado gás lacrimogéneo, balas de borracha ou outro tipo de força por parte da polícia.

"A polícia não está apenas a envolver-se mais porque [os manifestantes de esquerda] são mais violentos. Está a envolver-se ainda mais com manifestantes pacíficos"
, esclareceu ainda Roudabeh Kishi. "Essa é a tendência clara".

Os dados do ACLED também concluiram que as forças de segurança norte-americanas estavam mais propensas a intervir em protestos de esquerda do que de direita em geral, e mais propensas a usar a força quando intervinham.

A polícia prendeu ou interviu em nove por cento dos 10.863 protestos do Black Lives Matter e outros protestos de esquerda entre 1 de abril de 2020 e 8 de janeiro de 2021, em comparação com apenas quatro por cento dos 2.295 protestos de direita.


E, metade das vezes em que a polícia fez qualquer intervenção num protesto de esquerda, envolveu o uso de força violenta, segundo os dados do ACLED, em comparação com apenas cerca de um terço das vezes em protestos de direita.

Além disso, no geral, 94 por cento das manifestações de esquerda nos últimos dez meses foram pacíficas. Também o US Crisis Monitor descobriu anteriormente que, apesar da retórica de Trump e da intensa cobertura dos media sobre os danos à propriedade ou violência durante os protestos neste verão contra a violência policial, mais de 93 por cento dos protestos Black Lives Matter desde abril não envolveram danos às pessoas ou a propriedades.

Salienta-se que a maioria dos protestos categorizados como de esquerda foram manifestações Black Lives Matter, mas também incluíram manifestações pró-Biden, protestos de grupos de esquerda, como Abolish ICE, NAACP ou Democratic Socialists of America; e protestos associados a grupos de milícias e movimentos de rua antifascistas ou esquerdistas.

Já os protestos de direita incluíram manifestações pró-Trump e pró-polícia, incluindo manifestações "Blue Lives Matter", ou protestos da direita contra as restrições à saúde pública de combate ao coronavírus, protestos envolvendo apoiantes da teoria da conspiração QAnon e outros associados com o movimento "Save Our Children", e os comícios "Stop the Steal" que promoviam as falsas afirmações de Trump sobre a derrota nas eleições de 2020.
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