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Franco sai do Vale dos Caídos, o monumento onde quis imortalizar a ditadura

por Andreia Martins - RTP
Susana Vera - Reuters

Os restos mortais de Francisco Franco são exumados e trasladados esta quinta-feira após decisão do Supremo Tribunal espanhol, proferida a 30 de setembro. É o culminar de uma contenda jurídica entre o Governo de Madrid e os descendentes diretos do ditador espanhol, que levará os seus restos mortais desde o Vale dos Caídos até ao cemitério municipal de El Pardo-Mingorrubio, na capital espanhola. No entanto, as fraturas do tempo da Guerra Civil e das quase quatro décadas de franquismo não ficam esquecidas, como demonstrou todo o processo decisório até aqui e as reações ao mesmo dos dois lados da barricada.

Quando forem 10h30 locais, menos uma hora em Lisboa, inicia-se no Vale dos Caídos, a cerca de 55 quilómetros de Madrid, o processo de exumação e transferência dos restos mortais do ditador Francisco Franco do local onde se encontram desde 23 de novembro de 1975, logo três dias após a sua morte.  
O caixão com os restos mortais de Franco sai da basílica aos ombros de alguns dos cerca de 20 familiares diretos – netos e bisnetos - que vão marcar presença na cerimónia, ainda que sem quaisquer bandeiras ou honras militares. 

Dentro da basílica não serão captadas imagens e só poderão estar os trabalhadores necessários para extrair a laje que cobre a tumba, com 1.500 quilos. Estará ainda um médico legista, a ministra da Justiça em exercício, Dolores Delgado, que regista em nome do reino esta exumação histórica.  

A partir daqui, será transferido pelas Forças Armadas espanholas para o cemitério municipal de El Pardo-Mingorrubio, a 20 quilómetros da capital espanhola, onde decorrerá uma cerimónia religiosa reservada à família. Francisco Franco será então trasladado para junto da zona onde se encontram os restos mortais de Carmen Polo, viúva do ditador espanhol.  

De recordar que a exumação dos restos mortais de Francisco Franco voltou ser debatida após a tomada de posse de Pedro Sánchez como chefe do Governo espanhol, em junho de 2018, tendo sido mesmo uma das primeiras medidas anunciadas pelo executivo, ao abrigo da Lei da Memória Histórica, aprovada pelo Congresso espanhol em 2007.   

Francisco Franco integrou o golpe de Estado de 1936 que deu início à Guerra Civil espanhola. Governou o país desde o final do conflito até morrer, em 1975. 
Mas o desfecho só aconteceu depois de uma acalorada batalha jurídica, concluída em setembro último, quando o Supremo Tribunal espanhol proferiu a sentença que determinou a exumação dos restos mortais de Francisco Franco para o cemitério de El Pardo.  

Uma decisão unânime dos seis juízes que analisaram o recurso que tinha sido colocado pela família do ditador, já que os descendentes diretos de Francisco Franco preferiam que os restos mortais fossem transferidos para a catedral de Almudena, localizada no centro de Madrid, perto do Palácio Real.  

O Governo de Madrid garantiu que o processo decorreria com “dignidade e respeito” e com privacidade para os familiares, mas lembrou ainda esta semana que “os restos mortais do ditador não poderiam continuar num mausoléu público que exalta a sua figura, algo expressamente proibido pela Lei da Memória Histórica". Pedro Sánchez, chefe do Governo em exercício, disse que esta era “uma grande vitória” da democracia espanhola.  

Depressa, os saudosistas do franquismo apelaram à mobilização e convocaram um “ato de homenagem” ao ditador no cemitério de El Pardo, o que levou o Governo espanhol a proibir as concentrações naquele local, devido ao “risco certo e concreto de alterações da ordem pública com perigo para pessoas ou bens”.  

Segundo um comunicado do Governo, citado pela agência Efe, “nada impede” no entanto que as concentrações sejam convocadas para outros espaços públicos.

Por precaução, a Polícia Nacional espanhola restringiu o acesso ao cemitério nos últimos dias, desde que ficou conhecido o dia e a hora da exumação.   
Os restos mortais de Francisco Franco vão estar a partir de agora no cemitério municipal de El Pardo-Mingorrubio, nos arredores de Madrid. Foto: Rodrigo Jimenez - EPAO sonho do ditador em CuelgamurosNo primeiro aniversário do fim da Guerra Civil de Espanha, a 1 de abril de 1940, um decreto da presidência do Governo espanhol marca o ponto de partida para a construção daquele que foi até hoje o grandioso túmulo de Francisco Franco e com o qual o ditador quis imortalizar a vitória dos nacionalistas e os “caídos” por ela no sangrento conflito.

“A dimensão da nossa cruzada, os sacrifícios heroicos da vitória e a transcendência que teve para o futuro da Espanha (…) não podem ficar perpetuados pelos simples monumentos com que se costumam comemorar, em vilas e cidades, os grandes feitos da nossa histórica. (…) É necessário que as pedras que se levantem tenham a grandeza dos monumentos antigos, que desafiem o tempo e o esquecimento e que constituam um lugar de meditação e repouso, em que as gerações futuras prestem tributo de admiração aos que lhes legaram uma Espanha melhor”, aponta o boletim oficial do Estado, recolhido dos arquivos pelo jornal El País. 

A construção deveria ter sido rápida, mas arrastou-se por décadas, muito devido às condições adversas do terreno que acolheu o mausoléu, mas também devido às sequelas da Guerra Civil, à Segunda Guerra Mundial e aos anos posteriores de bloqueio internacional contra o regime espanhol. 

Mais de 500 mil pessoas perderam a vida durante a Guerra Civil espanhola. 
Não se sabe ao certo se a ideia original dos Caídos partiu de Francisco Franco, mas é certo que o ditador espanhol mostrou desde cedo grande empenho no projeto. Quando, por exemplo, lhes são mostrados os primeiros esboços da cruz gigante que domina a paisagem do vale de Cuelgamuros, a deceção era evidente: “Viu o que os seus companheiros fizeram para o projeto da cruz? A mim parece-me que fizeram uma porcaria, que não era aquilo que tinham de fazer, que deviam ter feito algo diferente, que continuavam a pensar em pequeno, que foi uma coisa sem inspiração”, disse Franco ao primeiro arquiteto responsável pelo monumento, Diego Méndez.

A partir de 1943, presos, na sua maioria condenados republicanos, passaram a participar nos trabalhos de forma a reduzir as suas penas e a ganhar um salário simbólico. Das prisões do regime saíram boa parte dos 20 mil trabalhadores que participaram pela construção do monumento. Apesar dos perigos inerentes àquela construção e às duras condições de trabalho, os prisioneiros admitiam que “era melhor do que estar na prisão”.  

O Vale dos Caídos só viria a abrir ao público em 1958, sendo que a inauguração oficial aconteceu a 1 de abril de 1959, no 20º aniversário do fim da Guerra Civil. No dia anterior, foram trasladados para o local os restos mortais de José António Primo de Rivera, “mártir” da Guerra Civil para os franquistas. 

No entanto, o mausoléu passaria também a acolher os restos mortais de milhares de vítimas do lado republicano. Muitas famílias do lado nacionalista recusaram-se a trasladar os seus mortos para o novo monumento, pelo que Franco recorreu ao que chamava em tom pejorativo de “fossas de rojos”, num autêntico roubo de corpos, sem questionar ou pedir autorização às famílias dos republicanos que até então tinham estado enterrados em valas comuns.  
O monumento idealizado por Franco acabou por receber o corpo do ditador, a 23 de novembro de 1975, apenas três dias após a sua morte. Até hoje esteve situado precisamente debaixo da gigante cruz dos Caídos, ao lado de Primo de Rivera.  
A tumba de Francisco Franco no Vale dos Caídos com flores no 43º aniversário da morte do ditador, a 20 de novembro de 2018. Foto: Sergio Perez - ReutersOs outros vales dos caídos
Com a Transição para a democracia, o Vale dos Caídos transformou-se na mais forte recordação material do regime ditatorial, um espaço de peregrinação e de homenagem para todos os saudosistas e apoiantes de Franco. No entanto, com a Lei da Memória Histórica, aprovada em 2007, ficou definido que o monumento deveria “honrar e reabilitar a memória de todas as pessoas que faleceram na sequência da Guerra Civil e da repressão política que se seguiu, com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre este período histórico e dos valores constitucionais”.  

Entre 1959 e 1983 a cripta acolheu 34 mil corpos, incluindo mais de 12 mil que continuam por identificar. Até hoje são várias as famílias dos republicanos ali enterrados que mantêm os pedidos de exumação, uma vez que foram inicialmente trasladados sem a sua autorização.  

Mas a questão continua por resolver em muitas outras “criptas”, menos monumentais, espalhadas por toda a Espanha. Na mesma semana em que anunciou a trasladação de Franco, o Governo espanhol confirmou que irá financiar até ao final deste ano a abertura de 13 valas comuns e a exumação dos corpos encontrados.

No ano passado a ministra espanhola da Justiça tinha prometido encetar a busca por desaparecidos da época do franquismo bem como a elaboração de um “censo” oficial com as vítimas da Guerra Civil e da ditadura.  

Perante a notícia, o presidente da Associação para a Recuperação da Memória Histórica, Emilio Silva, considerou que esta é uma medida eleitoralista de Pedro Sánchez, uma vez que faltam pouco mais de duas semanas para novas eleições gerais em Espanha, que se realizam no próximo dia 10 de novembro.  

Certo é que desde José Luis Zapatero nenhum Governo espanhol tinha disponibilizado tantos fundos para desenterrar as vítimas da guerra e do franquismo. No total, entre 2000 e 2018 foram abertas 740 fossas comuns e foram recuperados mais de nove mil cadáveres. 

Agora, os peritos recomendam que o Governo lidere os esforços que permitam exumar mais 20 mil a 25 mil pessoas, e insistem na necessidade de criar um censo de vítimas e um novo mapa de fossas, assim como uma rede de laboratórios forenses e um banco de dados de DNA, estimando que esta atividade possa estar concluída ao fim de seis anos.   
Restos mortais de vítimas da Guerra Civil, fuziladas em 1937 pelas forças apoiantes de Francisco Franco, no decurso da exumação numa vala comum situada em Huesca, em julho de 2019. Foto: Juan Medina - Reuters
“Descanso dos injustos”   
O jornal El País lembrava esta semana que esta não será a primeira sepultura, ou “descanso dos injustos”, de um ditador na capital espanhola. Por exemplo, o corpo de Rafael Trujillo, ditador da República Dominicana entre 1930 e 1961, está no mesmo cemitério de El Pardo-Mingorrubio, onde ficarão a partir de agora os restos mortais de Franco.    
Trujillo esteve sepultado no seu país de origem até que a família, com receio de possíveis profanações, optou por enviar os restos mortais para o cemitério de Père-Lachaise, em Paris, sendo que acabou por ir para Espanha em 1970, ainda debaixo do “manto protetor do franquismo”.
 
“As relações entre Trujillo e Franco foram cordiais e de mútua colaboração em múltiplos aspetos. Ambos foram ditadores férreos, de formação pretoriana e tiveram em comum o fervor católico e o anticomunismo”, assinala o historiador dominicano Juan Daniel Balcácer.  

Também a sepultura de Marcos Pérez Jiménez, ditador na Venezuela entre 1952 e 1958, está em Madrid, no Cemitério de La Paz.  

Destaque ainda para as duas sepulturas no cemitério de San Isidro, o mais antigo cemitério de Madrid: Fulgencio Batista, Presidente em Cuba entre 1952 e 1959, que acabaria por ser derrubado pela Revolução Cubana de Fidel Castro e Che Guevara; e ainda Ante Palević, ditador croata que liderou o país entre 1941 e 1945 num regime marioneta de Adolf Hitler que se tornou conhecido pela brutalidade dos ustashas. Escreve o El País que esta é a tumba mais frequentemente visitada pelos nostálgicos fascistas.

“Todos estes ditadores chegaram a Espanha de diversas formas e por diferentes motivos (…), mas todos graças ao antigo ditador espanhol. Desde que ficou isolado, no final de Segunda Guerra Mundial, Franco procurava aliados e apoios em qualquer lugar. O acolhimento de pessoas da sua órbita ideológica era uma forma de tentar obter alguma legitimidade externa”, considera Juan Carlos Pereira, historiador da Universidade Complutense.
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