"Fugimos quando soubemos que o Estado Islâmico estava a chegar" - família de Kobani

Sanliurfa, Turquia, 28 dez (Lusa) - A vida era pacata em Kobani, uma cidade de 200 mil habitantes a noroeste da Síria e a dois quilómetros da fronteira com a Turquia, mas para a família Besir a iminente chegada dos `jihadistas` do Estado Islâmico (EI) precipitou a fuga.

Lusa /

"Quando soubemos que o Estado Islâmico estava a chegar, tivemos que sair urgentemente", é o relato contido à agência Lusa de Muhammed Besir, 63 anos, um pai de família que há quatro meses teve que fugir com a mulher, Hatice Hidir, 55 anos, duas filhas e uma neta adolescente de 16 anos, Pervin Besir.

Aterrorizados com as crueldades perpetradas pelo EI, Muhammed e Hatice, casados há quase 40 anos, deixaram tudo para trás, bens, apartamento próprio e fugiram apenas com a roupa do corpo para a fronteira turca passando pela cidade de Suruç até encontrar um apartamento para alugar em Sanliurfa, a 100 quilómetros da sua cidade natal do lado sírio.

"Em Kobani tínhamos uma vida boa, casa e trabalho. Tivemos que fugir porque o EI estava a aproximar-se. Eles têm um entendimento muito duro, são um grupo violento. Quem não segue o caminho deles, ameaçam, cortam cabeça e matam", relatou Muhammed.

Kobani é um dos três principais enclaves curdos da Síria. A cidade conseguiu por mais de dois anos ser um local livre do conflito entre rebeldes e forças do governo de Bashar al-Assad, pois era controlada pelas Unidades de Proteção Popular (YPG), a milícia do partido curdo naquele país. A cidade servia de referência para acolher outros sírios árabes, curdos e turcomanos.

Contudo, o Estado Islâmico fez da tomada da cidade curdo-síria o seu principal objetivo e os moradores de Kobani não foram poupados.

A batalha continua acirrada, com os dois grupos a disputarem a cidade rua a rua. O conflito já está a ser considerado como a "Estalinegrado dos curdos", numa referência à resistência soviética ao invasor nazi, na Segunda Guerra Mundial.

No fim de outubro, a Turquia autorizou que combatentes curdos iraquianos, os `peshmergas`, chegasse a Kobani através do seu território.

Os cinco membros da família Besir vivem agora num edifício de três andares, no bairro pobre de Sigorta, em Sanliurfa, onde há uma comunidade de curdos. No apartamento de três divisões, sem mobília, os quartos são cobertos com carpetes, algumas almofadas e poucas cortinas. Os bens mais valiosos são cinco cadeiras de madeira, uma televisão e um aquecimento.

Sem poderem trabalhar formalmente, pois o governo turco não lhes reconhece o estatuto legal de refugiados e apenas assegura a permanência temporária no país até ao fim do conflito, eles não são autorizados a ter empregos.

Com o rendimento mensal de apenas 400 liras turcas (140 euros), pois uma das filhas trabalha como vendedora numa loja, a família Besir consegue sobreviver com ajuda de conhecidos turcos e doações de alimentos e roupas de entidades humanitárias, como a organização turca Kimse Yok Mu, que apoia a sírios que não estão acolhidos em campos de refugiados.

Como muitos moradores de Kobani, a família Besir não quer afastar-se muito da fronteira na esperança de poder regressar um dia a casa.

"Não queremos muita coisa, queremos só uma vida normal. Esperamos que alguém nos abra um caminho. Assim não há mais jeito de viver, a vida aqui é muito difícil", lamenta Muhammed.

Relatos de sírios fugidos dão conta de que o Estado Islâmico mata crianças e sequestra mulheres para as vender como escravas.

"Eu tinha muitas amigas em Kobani, quando o EI chegou, algumas delas foram presas e levadas por eles. Não sei se ainda vivem, não sei até hoje o que aconteceu com elas. Desejo que estejam vivas", comentou a neta Pervin Besir.

Tímida, triste e sem conseguir comunicar-se, Pervin teve parte de sua adolescência roubada. A jovem não estuda, pois apenas fala curdo e não encontrou nenhuma escola que oferecesse aulas na sua língua. Sem esperança, diz apenas que procura trabalho.

"Tenho que ajudar a minha família com dinheiro. Já cresci e sou uma jovem. Hoje penso em como posso me sustentar. Já virei adulta e preciso trabalhar, mas não consigo ter sonhos para a minha vida", lamentou.

A avó que cuida da neta como se fosse filha, pois a jovem é órfã, lamenta não ter condições de a matricular em nenhuma escola.

"Não era isto que eu esperava para as minhas filhas. Se tivesse a oportunidade, levava-as para a escola e dar-lhes-ia uma vida mais tranquila. Faria de tudo para dar um futuro melhor. Acreditamos em Deus e, se ele colocou essa pedra no nosso caminho, deve ser algum tipo de provação que devemos passar. Temos que ter paciência para superar essa etapa da vida", concluiu Hatice Hidir.

FOS // EL

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