As sondas de observação marítima revelam alterações significativas no ambiente NOAA/DR

Gelo junto ao Ártico com o maior recuo em 18 anos

As formações geladas planetárias estão a diminuir. Prova disso são os registos científicos fornecidos pelas sondas colocadas, há já alguns anos, em pontos estratégicos, que estudam a evolução e o comportamento do ambiente e da fauna. É precisamente uma dessas sondas, a M2 – Peggy, ancorada no Mar de Bering, a oeste do Alasca, a dar o primeiro sinal de alerta: no último ano, pela primeira vez neste ponto geográfico, a temperatura máxima foi de 1,5 graus positivos.

Normalmente, esta extensa região marítima localizada no extremo norte do Oceano Pacífico, que liga ao Oceano Ártico (Estreito de Bering), entre o Alasca e a Sibéria, tem um comportamento sazonal consistente, refletido nos dados da sonda Peggy.

O Bacalhau do Ártico é uma espécie sobrevivente. Devido ao grande número de predadores, a espécie “Boreogadus saída” teve de fugir para águas mais geladas para se poder manter. Resistentes às geladas águas do Mar de Bering, estes peixes vivem e reproduzem-se aproveitando o fitoplâncton que se forma durante a primavera.

Em novembro, o gelo marinho migra através do Estreito de Bering para sul, ou forma-se em algumas partes do Mar de Bering. Como subproduto da formação de gelo marinho (água doce), uma grande massa de água fria e salgada acumula-se perto do fundo do mar.

Na primavera, o fitoplâncton floresce e, já no início do verão, o gelo marinho começa a derreter. No entanto, a água desta vasta piscina não aquece o suficiente e permanece muito fria durante o período de verão.

Mas este é um mar estratificado. Com temperaturas médias um pouco abaixo dos zero graus Celsius - mais frias do que a água circundante e mais próximas da superficie – as águas mais profundas são parte fundamental do ecossistema do Mar de Bering. É precisamente nestas águas frias que o bacalhau do Ártico se refugia, escondendo-se de predadores como o bacalhau do Pacífico e o escamudo, que são menos tolerantes ao frio. O bacalhau do Árctico engorda em copépodes grandes, semelhantes a camarões, e desovam as suas crias. Por sua vez, os peixes mantêm os ursos polares e as focas bem alimentados.

Mas no inverno de 2018 o gelo marinho não apareceu. E dados transmitidos pela Peggy, juntamente com outros ancoradouros, revelaram que a piscina fria se tornará persistente. O alarme passou pela comunidade científica oceânica e pelos investigadores que seguem desde a física do Mar de Bering às pequenas criaturas que vivem no fundo do mar, passando pelos maiores mamíferos marinhos, que se encontram no topo da cadeia alimentar.

Dados que foram apresentados à comunidade científica em dezembro, na reunião anual da União Geofísica Americana, que decorreu em Washington, para serem cuidadosamente estudados.


Apesar dos dados recolhidos e do alerta da natureza, "ainda não temos dados suficientes", diz a bióloga e oceanógrafa do Centro de Ciências Ambientais da Universidade de Maryland, Jacqueline Grebmeier.
O ancoradouro Peggy monitoriza as condições no Mar de Bering há 25 anos. Uma linha de sensores que se estende por mais de 70 metros até ao fundo oceânico, onde o sensor M2 está amarrado, recolhendo informações sobre temperatura, salinidade e outras propriedades.
"É possível que estes dados, infelizmente, passem a ser a regularidade no Mar de Bering", alerta a investigadora que studa a vida no fundo do mar no Ártico há mais de 30 anos. "Acho que é o começo da mudança".

Se os eventos do ano passado representarem uma nova normalidade para o Mar de Bering e a extensão de gelo no mar passe a ter uma frequência muito baixa a partir de fevereiro, então estaremos perante uma brusca e complexa mudança no ecossistema que há muito floresceu nessas águas.

Para as indústrias pesqueiras e turísticas, os tempos também não se mostram generosos.


Degelo visto como oportunidade económica
Se o degelo no Estreito e no Mar de Bering é para o ambiente um problema, para as operadoras comerciais de transporte marítimo é uma oportunidade. Este estreito canal de 85 quilómetros congela durante o inverno, o que impede a circulação marítima. Um corte com elevados custos para as empresas de transporte marítimo, forçadas a muitos dias de viagem.

Foi precisamente nesse sentido que a Maersk, uma das maiores empresas mundiais de transporte de contentores por via marítima, realizou um teste em agosto do ano passado, enviando um navio com 3600 contentores de 20 pés através do Estreito de Bering. Esta viagem experimental permite aos transportadores realizarem a ligação entre a Ásia e a Europa em cerca de 40 dias, poupando duas semanas de viagem e aproximadamente 7500 quilómetros.


Mas este ponto geográfico gelado, situado entre o Alasca e a Sibéria, não é apenas encarado como passagem. Mais do que a poupança de tempo e de dinheiro, estima-se que no fundo deste mar gelado exista um vasto depósito de petróleo. Interesses económicos que se complicam quando na disputa territorial por estas águas estão duas superpotências: os Estados Unidos e a Rússia.

O problema joga-se em tabuleiros estratégicos de poder com boas notícias para a economia, mas nada boas para o ambiente.

Um mar "fechado" e em mudança
Separados pelo Estreito de Bering, com 82 quilómetros de largura, o Alasca e a Sibéria, pertencentes aos Estados Unidos e à Rússia, respetivamente, são territórios soberanos pela zona económica exclusiva do Mar de Chukchi, a norte do estreito e na extremidade do Oceano Ártico, e a sul do Mar de Bering, que se estende até ao vasto braço de ilhas do Alasca, as Aleutianas.

Nos anos de 2017 e 2018 os sinais das formações e das temperaturas marítimas seriam diferentes. Em novembro de 2017, o gelo marinho já estava atrasado. O ar acima das ondas não estava especialmente quente, o que indicaria alguma normalidade e até era típico para aquela época do ano, como deu conta Phyllis Stabeno, a oceanógrafa física do Laboratório Ambiental Marinho do Pacífico da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica, em Seattle, na reunião que decorreu em Washington.

Todavia, o vento que se mostrava excecionalmente persistente soprava de sul, impedindo que o gelo descesse do Mar de Chukchi, como seria normal.Trata-se de dois mares gémeos no inverno, com formações geladas que impedem a circulação da navegação. Com o aproximar da estação mais quente (primavera-verão), o mar mais a sul [Bering] fica livre de gelo, permitindo à fauna local alimentar-se e reproduzir-se.

De acordo com a investigadora, o vento já no mês de dezembro e janeiro diminuiu, mas nessa altura a temperatura do ar estava mais alta do que o normal.

O Mar de Chukchi, normalmente coberto em pelo menos 80 por cento de gelo grosso, resistente a quebras-gelos até finais de janeiro, apresentava ainda grandes faixas abertas de água, o que significava menos gelo disponível para migrar para o sul através do Estreito de Bering.

Localizada a cerca de 800 quilómetros a noroeste da sonda Peggy, a sonda M8 não havia registado tão pouco gelo no inverno desde 2008, altura em que foram captadas temperaturas, um pouco acima do fundo do mar, mais de três graus Celsius para lá do normal. Mas também a Peggy, localizada junto às ilhas Aleutianas, mais a sul, nunca tinha registado temperaturas de água tão altas no verão, perto do fundo do mar (+/- 70 metros). Naquele verão, atipicamente, a água nunca desceu abaixo de zero graus Celcius.


Em fevereiro os fortes ventos do sul regressaram e a direção incomum do vento, para norte, permaneceu até março. Os cientistas suspeitam que esses ventos mantiveram o Mar de Chukchi excecionalmente quente, empurrando as águas mais quentes do Mar de Bering para o norte. As águas mais quentes também impediram a formação de gelo marinho. O gelo que se formou nos mares de Chukchi e Bering era fino e facilmente empurrado pelos ventos predominantes.

Um dos indicadores para a fauna marinha que procura abrigo e alimentação no Mar de Bering é a temperatura oceânica e a camada gelada que a superfície marinha expõe. O gelo ajuda a determinar quando e onde a comida fica disponível para a população que vive na água ou no fundo do mar.

Como o gelo marinho migratório viaja para o sul, acaba por derreter. Essa água é relativamente fresca e menos densa do que a água circundante. Como resultado, as águas tornam-se estratificadas, com a camada de água doce, cheia de nutrientes, mais à superfície. É esta mesma água que ajuda a dar origem ao fitoplâncton da primavera do sul do Mar de Bering, que, por sua vez, alimenta copépodes e outras pequenas criaturas flutuantes. Quando o fitoplâncton morre e se afunda, estes nutrientes fornecem uma importante fonte de alimento para as criaturas que vivem no fundo oceânico.

Com a ausência de gelo marinho, a água não se estratifica na primavera e as flores do fitoplâncton só surgem mais tarde, obrigando a uma rápida adaptação dos habitantes do Mar de Bering. Acontece que a natureza animal não está preparada para estas alterações na cadeia alimentar do ecossistema. "O momento é importante", diz Grebmeier. "É uma questão de quão rápido [os animais] se podem adaptar".

Além do mais, as já confirmadas alterações ambientais às condições do Oceano Ártico coincidem com a expansão de algas tóxicas nocivas, ameaçando as fontes de alimento, mas não só. Um outro grave problema proveniente do consumo e intervenção humana no planeta é a contaminação por microplásticos, em forte ascensão no Ártico, representando uma ameaça às aves marinhas e à vida marinha, e que por consequência chega ao consumo humano através das espécies pescadas nesta região.
Os registos fornecidos pela NASA dão conta que no passado dia 13 de março o gelo ártico atingiu o seu máximo, sendo um dos mais pequenos das últimas décadas. Créditos: NASA/DR
Ártico em transição

Embora a ausência de gelo marinho no último inverno seja importante, as águas do Ártico registam há várias décadas uma tendência de aquecimento. Por exemplo, a sul do Mar de Chukchi, o congelamento das águas tem registado um atraso de meio-dia por ano, desde 1981. Um fenómeno relatado pela equipa gerida pelo investigador Phyllis J. Stabeno, em novembro na Deep-Sea Research.

No norte do Mar de Bering, os dados do M8 também revelam mudanças acentuadas nos últimos quatro anos. De 1981 a 2014, o congelamento geralmente ocorria, em média, no final de dezembro. Mas desde 2014 este processo natural registava-se mais tarde (janeiro ou fevereiro) , ou não ocorreu de todo, como se verificou de 2018 para 2019.
A perdurar este cenário, o ecossistema natural mudará radicalmente nos próximos anos, com extinção de parte da fauna ainda existente, por fome ou inadaptação.
A continuar esta tendência de aquecimento, os efeitos sobre as espécies que habitam esta região marítima e especialmente as do fundo do mar vão certamente migrar para norte à procura de condições semelhantes ou iguais às verificadas até então.

Espécies como os bivalves que geralmente proliferam no fundo do mar em torno da Ilha de São Lourenço, a sul do estreito, estão já a fugir para norte, diz bióloga e oceanógrafa do Centro de Ciências Ambientais da Universidade de Maryland Jacqueline Grebmeier.

Em 2010, Grebmeier ajudou a criar e a estabelecer o Observatório Biológico Distribuído, num esforço internacional para monitorizar mudanças de longo prazo no ecossistema do Ártico. Agora constata a existência de um elevado risco de haver espécies em extinção pelo facto de outras habitualmente residentes se estarem a mover.

As mudanças nas presas tiveram impactos em cascata na cadeia alimentar: as alterações na distribuição e nos tipos de populações de peixes significaram a condenação de milhares de aves marinhas.

O Laboratório Ambiental Marinho do Pacífico da NOAA - Administração Nacional Oceânica e Atmosférica apurou que 2018 foi o terceiro ano consecutivo em que se registou uma elevada mortandade numa ave marinha local de grande envergadura.

Calvin Mordy, oceanógrafo biológico deste departamento da NOAA, refere que "as aves marinhas [que povoam esta região do Mar de Bering] mostraram evidências de fome. Não de doença".