Construída entre 532 e 537 d. C., a maior catedral do mundo durante vários séculos, considerada revolucionária ao nível arquitetónico, levou apenas seis anos a ser construída, por ordem do Imperador Justiniano. Este novo edifício massivo e majestoso constituía uma clara demonstração de poder do Império Bizantino perante a ameaça dos bárbaros, após a queda de Roma.
Tal como os nomes, os ornamentos e a simbologia de Hagia Sophia foram mudando com a evolução da história, desde logo com o Grande Cisma de 1054, os saques da Quarta Cruzada no início do século XIII, e sobretudo com a conquista turca, em 1453.
Com a chegada dos Otomanos ao Bósforo, a cidade de Constantinopla passa a ser apelidada de Istambul e um dos primeiros atos é a conversão de Hagia Sofia numa mesquita. Os sinos são removidos e são erguidos quatro minaretes. Os mosaicos que haviam suportado séculos de história e resistido a assaltos constantes foram em parte retirados. Mesmo hoje, ao nível do solo, grande parte das decorações de Hagia Sofia são de inspiração islâmica, ainda que alguns motivos cristãos, católicos e ortodoxos, também continuem visíveis.
Precisamente, mais de 80 anos depois de Atatürk ter secularizado a basílica, as marcas do tempo e da história prevalecem de tal forma que as autoridades turcas garantiram no início desta semana que os mosaicos da basílica com iconografia cristã que se encontram na direção de Meca, ou Qiblah, para onde os fiéis estão voltados, não serão removidos, mas serão tapados por cortinas em momentos de oração já a partir desta sexta-feira, dia 24 de julho.
“Com uma cúpula vasta e minaretes imponentes, Hagia Sofia é para humanidade o que o Grand Canyon é para a geologia: um livro ao ar livre que concentra quase um milénio e meio de história ocupando sucessivamente o lugar central para impérios cristãos ortodoxos e muçulmanos, atingido por saques, incêndios e terramotos”,
escreve David Gauthier-Villars, correspondente do jornal
The Wall Street Journal na Turquia.
Murad Sezer - Reuters
“Revolução religiosa” de Erdogan
Desde que chegou ao poder na Turquia, primeiro como chefe de Governo, desde 2003, e depois como presidente, desde 2014, Recep Tayyip Erdogan tem procurado restaurar a influência islâmica a cada decisão. A vontade de reconversão de Hagia Sofia em mesquita não é recente e vai no mesmo sentido de outros esforços que revertem decisões de Mustafa Kemal Atatürk, protagonista na transformação da Turquia moderna e secular após a queda do Império Otomano.
Em julho, o principal tribunal administrativo turco reverteu essa decisão de 1934 que classificava Hagia Sofia como museu, sob o apoio incondicional de Tayyip Erdogan. O Presidente turco, que vai participar na cerimónia religiosa desta sexta-feira, já veio garantir que o antigo museu, uma das principais atrações turísticas de Istambul, continua aberto para receber turistas e visitantes, independentemente do seu credo.
Murad Sezer - Reuters
No entanto, a decisão judicial altera o estatuto de um edifício simbólico para as relações ecuménicas e extingue um pilar do secularismo do país, pelo que tem originado várias críticas, desde a Igreja Ortodoxa à Igreja Católica. O papa Francisco confessou-se “muito angustiado” e as igrejas ortodoxas da Rússia e da Grécia condenaram a decisão.
A União Europeia e os Estados Unidos lamentaram a mudança de estatuto, assim como os cristãos mais extremistas que dão grande importância ao simbolismo de Hagia Sophia, sentimentos esses que “tornam a decisão ainda mais excitante para muitos turcos” que veem este momento como o fim de “uma era de humilhação”, de vingança sobre o Ocidente e de recuperação da soberania, escreve Selim Koru, analista político, num
artigo de opinião no
New York Times.
No dia em que a decisão foi anunciada por Erdogan, a UNESCO lamentou que a decisão tenha sido tomada “sem discussão prévia” e apelou a que o valor do património mundial fosse preservado. O braço cultural da ONU lembra que esta decisão levanta questões sobre o valor universal do monumento e que o estatuto de património mundial poderá mesmo ser revisto.
“Hagia Sofia é uma obra-prima da arquitetura e um testemunho único das interações entre Europa e Ásia ao longo dos séculos. O estatuto de museu refletia a natureza universal desta herança e tornava-a num poderoso símbolo de diálogo”,
frisou a diretora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay.
Erdogan, que fez no domingo uma visita surpresa ao monumento, insiste que esta é apenas uma questão interna. Nas imagens que mostram o Presidente turco é possível ver também alguns andaimes no interior da basílica, sinalizando o decurso de trabalhos de reconversão.
“Com esta decisão, Hagia Sofia tornou-se novamente numa mesquita, tal como desejado por Mehmed, conquistador de Istambul”, disse Erdogan numa declaração ao país, a 10 de julho.
As palavras e a decisão não surpreendem quem acompanha a situação social e política na Turquia, até porque vários outros monumentos turcos foram reconvertidos em mesquitas sobretudo na última década, como recorda Piotr Zalewski, correspondente da revista The Economist no país.
Neste contexto, a conquista do Império Bizantino pelos Otomanos em 1453 tem sido celebrada todos os anos
de forma cada vez mais fervorosa entre os turcos, numa viragem religiosa encabeçada pelo AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), força política de inspiração islâmica, com críticas veladas à herança bizantina mas também ao secularismo de Atatürk, fundador da República da Turquia.
O partido de Erdogan, assim como vários grupos turcos de inspiração religiosa, lembram que numa população de 82 milhões de pessoas, estima-se que apenas 1 a 3 por cento não sejam muçulmanos. Por isso, a conversão de Hagia Sofia em mesquita reflete de forma mais fiel a realidade de um país predominantemente muçulmano e com uma política ainda mais agressiva, sobretudo após a
alegada tentativa de golpe de Estado, em julho de 2016, e as tensões entre os militares, historicamente defensores de uma linha mais secular na Turquia.
“Hagia Sofia é o culminar da revolução religiosa de Erdogan, em curso há mais de uma década”, considera Soner Cagaptay, especialista na Turquia para o Washington Institute for Near East Policy, em declarações à agência Reuters.
O analista considera ainda que este é um passo no “projeto” de restauração do Islão na vida pública dos turcos, por exemplo com uma maior ênfase na educação religiosa no país.
Perdas políticas, situação internacional e Covid-19
Em 1965, o poeta turco Necip Fazil Kisakurek considerou que a reabertura de Hagia Sofia como mesquita seria apenas uma questão de tempo, argumentando que aquele local de culto convertido em museu era “o sarcófago do Islão”. Os esforços políticos efetivos no sentido de reabilitar um elemento simbólico central na história da Turquia surgiram numa altura em que Erdogan enfrenta dificuldades em várias frentes de batalha.
Desde logo, tal como no resto do mundo, o país atravessa enormes dificuldades decorrentes da pandemia de Covid-19. Até ao momento há registo de mais de 219.000 casos confirmados no país e quase 5.500 mortos.
Não sendo um dos países mais atingidos ao nível de infeções confirmadas e de óbitos – mais de 200 mil pessoas já recuperaram – a Turquia
já atravessava grandes dificuldades económicas antes da pandemia, com a lira turca a desvalorizar ainda mais perante o dólar.
Num país onde o setor do turismo tem um grande peso na economia, os meses de pandemia deixaram hotéis, restaurantes e museus vazios. Há apenas alguns dias, depois de ter retomado os voos internacionais a 11 de junho, Ancara voltou a suspender todos os voos de e para o Irão e Afeganistão.
A juntar às adversidades económicas e sociais, a decisão popular de reverter o estatuto de Hagia Sofia também não terá sido alheia aos mais recentes resultados do partido de Erdogan nas urnas. Nas eleições municipais de Istambul, em junho de 2019, Ekrem Imamoglu, candidato do partido social-democrata secular CHP, foi o grande vencedor.
As próximas eleições presidenciais decorrem em 2023, no ano do centenário da República da Turquia e há quem considere que a questão de Hagia Sofia “não é nada mais, nada menos, que uma jogada de tática política por parte de um Presidente cada vez mais desesperado”.
Trata-se, segundo o especialista em assuntos turcos, Cengiz Candar, de uma “reivindicação vigorosa pela liderança global dos muçulmanos” num momento em que predomina uma posição de política externa mais agressiva, por exemplo contra os arqui-inimigos curdos no Iraque e na Síria e ainda no confronto com o Egito na tentativa de expandir influência, tendo a Líbia como palco.
“Como museu, Hagia Sofia simbolizava a ideia de que os valores artísticos e culturais transcendem a religião e unem a humanidade. A conversão desta em mesquita é o símbolo da ascensão do nacionalismo de direita e do chauvinismo religioso no mundo de hoje”, considera o historiador Nicholas Danforth, em declarações ao site Al-Monitor, especializado na região do Médio Oriente.