"Homo affinis erectus". Encontrados em Espanha fragmentos de rosto com mais de 1,1 milhões de anos
Fragmentos de ossos faciais datados entre 1,1 e 1,4 milhões de anos, descobertos no sítio arqueológico de Sima del Elefante, reescrevem a história das migrações humanas. Este achado, no sistema de grutas nas montanhas de Atapuerca, é apontado como o mais antigo conjunto de restos humanos encontrados na Europa Ocidental. O fóssil foi atribuído ao Homo affinis erectus, uma espécie diferente e mais primitiva do que o Homo antecessor, indica a investigação divulgada esta quinta-feira.
Os fragmentos encontrados fazem parte do lado esquerdo do rosto de um indivíduo adulto que circulou pelo norte de Espanha, entre os 1,1 e os 1,4 milhões de anos.
Os restos dos ossos faciais conservados no sítio arqueológico de Sima del Elefante - maçã do rosto, maxilar superior e estrutura nasal - são indicadores de se tratar de Homo affinis erectus e fornece informações sobre as primeiras migrações e a evolução dos hominídeos na Europa durante o Pleistoceno Inferior (que corresponde ao período de entre 1,81 milhões de anos a 355 mil anos).
Área de escavação de ATE7-1, Nível TE7 de Sima del Elefante | IPHES-CERCA/CENIEH
Durante os últimos 50 anos de escavações arqueológicas sistemáticas nas grutas da zona montanhosa de Atapuerca, têm desenterrado evidências de ocupação humana cada vez mais antigas.
O rosto mais antigo conhecido na Europa Ocidental
O fragmento facial humano foi descoberto em 2022, mas os resultados foram divulgados esta quinta-feira na publicação Nature.
Uma equipa muiltidisciplinar é liderada por Rosa Huguet, investigadora do IPHES-CERCA, professora associada da Universitat Rovira i Virgili juntamente com Xosé Pedro Rodríguez-Álvarez, da mesma universidade e o Centro Nacional de investigação sobre Evolução Humana (CENIEH).
O grupo de cientistas reconstruiram os fragmentos - catalogados como ATE7-1 - combinando técnicas tradicionais de conservação e restauro com ferramentas avançadas de imagem e análise 3D.
Os arqueólogos batizaram informalmente o fóssil de “Pink” em homenagem aos Pink Floyd, cujo álbum The Dark Side of the Moon se traduz em “La cara oculta de la luna”, onde “cara oculta” significa “rosto oculto”.
“Após dois anos de investigação, uma análise detalhada do ATE7-1 ("Pink") revelou que esse fragmento de rosto não pertence ao Homo antecessor, a espécie identificada no local de Gran Dolina, mas sim a um hominídeo mais primitivo. No entanto, as provas disponíveis permanecem insuficientes para uma classificação taxonómica definitiva. Como resultado, foi provisoriamente atribuído ao Homo affinis erectus (H. aff. erectus)”, explica o estudo.
Afinidades com o Homo erectus
“O Homo antecessor compartilha com o Homo sapiens um rosto de aparência mais moderna e uma proeminente estrutura óssea nasal, enquanto as características faciais de Pink são mais primitivas, assemelhando-se ao Homo erectus, particularmente em sua estrutura nasal plana e subdesenvolvida”, sustenta María Martinón-Torres, diretora do CENIEH e investigadora principal do Projeto Atapuerca.
No entanto, "a evidência ainda é insuficiente para uma classificação definitiva, razão pela qual foi atribuída a H. aff. erectus. Esta designação reconhece as afinidades de Pink com o Homo erectus, deixando em aberto a possibilidade de que ele possa pertencer a outra espécie” argumenta Martinón-Torres.
Os restos humanos do Homo antecessor, encontrados numa outra área de Atapuerca, conhecida como Gran Dolina, estão estimados em cerca de 860 mil anos. Face à nova descoberta que recua a presença humana para 1,1 e 1,4 milhões de anos, o fóssil ATE7-1 sugere que o Pink “pertencia a uma população que chegou à Europa durante uma onda migratória anterior à do Homo antecessor”.
Em 2008, um maxilar humano com mais de 1,1 milhões de anos foi descoberto no mesmo local. Os novos fragmentos foram encontrados cerca de dois metros mais profundos do que o maxilar, o que sugere que estes de Pink são ainda mais antigos.
Ferramentas em pedra e ossos de animais com marcas de corte
A área escavada no Nível TE7 de Sima del Elefante, onde foram descobertos os ossos faciais de Pink, também apresenta evidências de presença e atividade de hominídeos durante o Pleistoceno Inferior.
Líticos encontrados no Nível TE7, de Sima del Elefante | Maria D Guillen / IPHES-CERCA/CENIEH
Os arqueólogos recuperaram “ferramentas de pedra (líticos) e restos de animais com marcas de corte, apontando para o uso de tecnologia lítica para o processamento de animais”.
“Embora as ferramentas de quartzo e sílex encontradas sejam simples, sugerem uma estratégia de subsistência eficaz e destacam a capacidade dos hominídeos de explorar os recursos disponíveis em seu ambiente”, Xosé Pedro Rodríguez-Álvarez, especialista em indústrias líticas.
Rosa Huguet acrescenta que “essas práticas demonstram que os primeiros europeus tinham uma compreensão íntima dos recursos animais disponíveis e sabiam como explorá-los sistematicamente".
A equipa de investigadores sublinham que dados paleoecológicos do TE7 sugerem que a "paisagem do Pleistoceno da Serra de Atapuerca era um ambiente dinâmico", com uma mistura de áreas arborizadas com com carvalhos, pinheiros, zimbros e áreas verdes pastagens, com bisontes e veados. Não faltariam fontes de água e rios com hipopótamos – "criando um habitat rico em recursos para essas primeiras populações humanas".
A equipa de investigadores sublinham que dados paleoecológicos do TE7 sugerem que a "paisagem do Pleistoceno da Serra de Atapuerca era um ambiente dinâmico", com uma mistura de áreas arborizadas com com carvalhos, pinheiros, zimbros e áreas verdes pastagens, com bisontes e veados. Não faltariam fontes de água e rios com hipopótamos – "criando um habitat rico em recursos para essas primeiras populações humanas".
"Sabemos, graças ao pólen e aos restos de pequenos animais, que os humanos antigos viviam num ambiente dominado por uma paisagem florestal húmida", descrevem.
Também poder-se-á aprender mais sobre o estilo de vida de Sima del Elefante a partir de um sulco que atravessa a coroa parcial de um dente no fóssil de Pink. Os investigadores acreditam que seja uma "marca de desgaste do uso de um palito rudimentar".
Ondas migratórias que moldaram a história humana
As origens e a dinâmica populacional dos primeiros assentamentos humanos na Europa Ocidental foram identificados na Georgia com os fósseis de Dmanisi. "Sabemos que os hominídeos deixaram África há pelo menos 1,8 milhões de anos. Agora, a descoberta de Sima del Elefante diz-nos que centenas de milhares de anos depois, os hominídeos chegaram à parte mais ocidental da Europa. Além do mais, a forma dos rostos modificou-se durante esse tempo".
A classificação do ATE7-1 como pertencente a uma população anteriormente desconhecida na Europa não só aumenta o conhecimento dos primeiros habitantes da Europa, como também abre portas a novas perguntas sobre a origem e diversidade dos hominídeos que cá chegaram observa Eudald Carbonell, co-diretor do Projeto Atapuerca.
“A descoberta de evidências para diferentes populações de hominídeos na Europa Ocidental durante o Pleistoceno Inferior sugere que esta região foi um ponto-chave na história evolutiva do género Homo”, salienta Carbonell.
Chris Stringer,especialista em evolução humana no Museu de História Natural de Londres, citada na publicação The Guardian, alega que que o fóssil é “um achado muito importante”. Em 2023, Stringer e outros identificaram um período de arrefecimento extremo por volta de 1,1 milhões de anos que pode ter empurrado os primeiros humanos da Europa Ocidental mais para sul, "possivelmente explicando a população diferente encontrada em Sima del Elefante".
“Este é mais um passo para a compreensão dos primeiros europeus”, acrescenta José María Bermúdez de Castro, também co-diretor do Projeto Atapuerca.
“Agora sabemos que esta primeira espécie teve uma aparência que lembra os espécimes incluídos por muitos no Homo erectus. No entanto, os restos do sítio de Sima del Elefante têm uma combinação muito particular de recursos. Futuramente, quando mais fósseis forem encontrados noutros locais contemporâneos poderemos chegar a uma conclusão mais robusta sobre a identidade desta espécie".
Em território português, o fóssil humano mais antigo, encontrado até agora, é o conhecido crânio da Aroeira, com cerca de 400 mil anos. Foi descoberto em 2014, na Gruta da Aroeira, por uma equipa de arqueólogos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, liderada por João Zilhão.