Humorista Dieudonné detido em França por "apologia do terrorismo"

por Graça Andrade Ramos, RTP
Dieudonné M'Bala M'Bala, comediante francês, durante uma conferência de imprensa em janeiro de 2014 a propósito do cancelamento de um seu espetáculo a solo por anti-semitismo Gonzalo Fuentes/Reuters

O caso está a ser investigado desde segunda-feira. O controverso humorista francês Dieudonné foi detido preventivamente pela polícia em Paris exatamente uma semana após o ataque contra o Charlie Hebdo. Em causa está um slogan criado pelo comediante, "Je me sens Charlie Coulibaly", que associa o nome do jornal satírico vítima de um atentado islamita ao apelido do terrorista que atacou sexta-feira um supermercado judeu.

A detenção de Dieudonné coincide com o dia em que o Charlie Hebdo esgota a sua primeira edição após os atentados de há uma semana, que vitimaram alguns dos seus principais cartoonistas, incluindo o diretor do jornal.Em sete dias a Justiça francesa abriu 54 processos por "apologia do terrorismo". Foram também instaurados 15 inquéritos por graffitis e dez por ataques a mesquitas e outros locais de culto muçulmanos.

E está a relançar o debate sobre quais são afinal os limites da liberdade de expressão, quando o mundo inteiro se mobilizou para defender o direito do Charlie Hebdo a arrasar pelo humor símbolos importantes para outros.

Os autores do atentado contra o jornal, na quarta-feira passada, eram dois irmãos, muçulmanos, que gritaram "vingamos o profeta", referindo-se a Maomé, que consideravam ter sido insultado por desenhos publicados no Charlie.
"Tudo está perdoado"
O ato de terrorismo dos irmãos Kouachi trouxe milhões para a rua, em todo o mundo, sob o slogan "Je suis Charlie", em defesa da liberdade de expressão e para condenar o recurso ao homicídio para calar uma sátira.

O semanário satírico, acolhido no jornal Libération, publicou esta quarta-feira na sua capa uma caricatura aparentemente de Maomé, muito triste e comovido, segurando um cartaz "Je suis Charlie" sob as palavras "tudo está perdoado".

A edição de Charlie Hebdo uma semana após os atentados esgotou três milhões de exemplares em poucas horas obrigando à publicação de mais dois milhões (Foto Reuters)

A prisão de Dieudonné levanta agora a questão de, em França, ser aparentemente lícito para uns publicarem desenhos que desdenham símbolos de uma religião professada por milhões e ser considerado crime o caso de Dieudonné, que expressa opiniões politicamente "incorretas".A justiça condena Dieudonné regularmente por "difamação, injúria e provocação ao ódio racial" e por "contestação de crimes contra a humanidade, difamação racial, provocação ao ódio racial e injúria pública". O artista já viu espetáculos seus impedidos de subir ao palco e é sobretudo conhecido por manifestações anti-semitas, embora também ataque o cristianismo.

O próprio jornal francês Le Monde, ainda antes da detenção de Dieudonné, questiona num extenso artigo as diferenças entre a sátira de Charlie Hebdo e as ações de Dieudonné, que levam a que o jornal, apesar de levado a tribunal diversas vezes (cerca de 50 processos 1992 e 2014, 10 destes só em 1998), tenha sido absolvido, e o humorista, pelo contrário, condenado várias vezes.

De facto, afirma Le Monde após citar a legislação francesa que limita a liberdade de expressão, esta "pode ser enquadrada na lei".
Livres... mas enquadrados
"Os principais limites à liberdade de expressão em França abrangem duas categorias: a difamação e o insulto, por um lado; discursos que apelam ao ódio, que incluem designadamente a apologia de crimes contra a humanidade, os propósitos anti-semitas, racistas ou homofóbicos, por outro lado", refere o jornal.

A lei aplica-se a qualquer tipo de publicação incluindo o Facebook e abrange não só o autor mas também os responsáveis pelo meio onde o crime se concretize.

Uma provisão que já vem da lei sobre liberdade de imprensa de 29 de julho de 1881. Nesta o seu artigo 1.º é claro, diz o Le Monde: "a impressão e a livraria são livres", pode-se imprimir e editar o que se quiser. Mas logo depois surgem as exceções.

A primeira é a injúria, o insulto e a difamação. Os artigos 23.º e 24.º explicam ainda que "serão punidos como cúmplices de uma ação qualificada como crime ou delito aqueles que, seja pelo seu discurso, gritos ou ameaças proferidas em lugares públicos ou de reunião". E lista os propósitos que podem levar a uma condenação.

São seis e incluem a apologia de crimes de guerra e contra a humanidade, o incitamento a crimes de terrorismo e a provocação à discriminação, ao ódio ou a violência, contra pessoas "devido à sua origem ou não a uma etnia, uma nação, uma raça ou uma religião determinada" ou pela "sua orientação sexual ou a sua deficiência".

O racismo e o anti-semitismo são por isso crimes.

Dieudonné acena aos seus fãs após o Conselho de Estado ditar o cancelamento do seu espetáculo em Nantes a 9 de janeiro de 2014, por anti-semitismo. Um tribunal de Nantes tinha autorizado o espetáculo mas o ministro francês do Interior apelou da decisão para o Conselho de Estado (Foto: Reuters)O caso do humor
Tanto o caso do Charlie Hebdo como de Dieudonné referem-se contudo a um tipo particular de discurso, o humorístico.

Le Monde cita um jurista para lembrar que, em 1992, o Tribunal de Grande Instância de Paris reconheceu que a liberdade de expressão "autoriza um autor a forçar os traços e a alterar a personalidade daquele que representa" e que existe direito "ao desrespeito e à insolência".

Resta saber em que categoria criminal, se alguma, será colocado o mais recente slogan de Dieudonné. "Je suis Charlie Coulibaly" poderá ser considerado o equivalente a uma injúria ou até um incitamento ao terrorismo como pretende a investigação que levou à sua detenção? E se sim, porquê?
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