Imprensa satírica francesa remonta à Revolução de 1789

Paris, 08 Jan (Lusa) -- A imprensa satírica francesa, sem tabu quando se trata de criticar poder ou religião, é uma tradição que remonta à Revolução Francesa de 1789, da qual o semanário Charlie Hebdo, atingido por um atentado inédito, é o herdeiro.

Lusa /

"É uma especialidade francesa. Aqui, brinca-se, utiliza-se o desenho de forma militante para contestar, denunciar, derrubar barreiras", disse á AFP um especialista da história do desenho de imprensa, Guillaume Doizy.

"Não há equivalente ao Charlie Hebdo no estrangeiro", reforçou o historiador Christian Delporte. A singularidade deste semanário, cuja redação foi dizimada por um atentado na quarta-feira, "é a de estar não apenas na sátira política, mas também na crítica social, seja a ecologia, a economia ou a finança", acrescentou.

Fora da França, "há jornais de humor, mas a política é marginal, ao passo que "em França é central", reforçou.

Associando ironia forte e humor negro, o Charlie Hebdo, tal como o Canard Enchaîné ou o já extinto Hara-Kiri, títulos mais emblemáticos da imprensa satírica francesa, perpetuam uma tradição libertária e anticlerical, que conheceu o seu apogeu no século XIX com centenas de títulos, uns mais corrosivos do que outros.

"Esta imprensa levanta todos os tabus", destacou Christian Delporte. Porém, Cabu, o desenhador assassinado na quarta-feira, que trabalhava para os dois títulos, relativizava: "No Canard Enchaîné há limites (a morte, o sexo, etc.), no Charlie Hebdo pode-se falar e desenhar sobre tudo".

A verdadeira filiação do Charlie Hebdo é `O Prato da Manteiga` [expressão que em Francês permite um trocadilho com `Fonte de Lucros`], um jornal satírico anarquista do início do século XX, anticolonialista, antirreligioso, antimilitarista e anticonformista.

Simbiose entre a força da mensagem e a força gráfica, o jornal "atacava na época a tirania e criticava todos os poderes", especificou Christian Delporte.

Mas a violência do verbo e do traço não é apanágio dos caricaturistas de esquerda. Existiam no século XIX ou nos anos 1930 "desenhadores de direita e extrema-direita, também ferozes e talentosos", recordou Guillaume Doizy, que publicou em 2005 um livro sobre a caricatura anticlerical.

Mas foi um século mais tarde, com as ideias revolucionárias e os pensadores a lutar pela liberdade de expressão, que a caricatura começou a propagar-se.

"A Revolução e a descristianização subsequente fizeram, ainda hoje, a diferença com os outros países", realçou Guillaume Doizy. O rei Luís XVI e a sua esposa Maria Antonieta, guilhotinados em 1793, eram então alvos privilegiados dos caricaturistas, que os desenhavam em porco e serpente, respetivamente.

No Reino Unido, a imprensa satírica "foi sempre muito respeitadora da religião", mesmo que a monarquia seja por vezes criticada por alguns títulos. Da mesma forma, nos EUA, "não é tradição criticar a Igreja", observou Guillaume Doizy.

"A caricatura de imprensa nasceu verdadeiramente no início do século XIX, com Daumier, Cham, depois, mais tarde, com André Gill, no Segundo Império", disse Christian Delporte.

A igreja católica, o Vaticano, sofrem então os ataques dos caricaturistas, maioritariamente anticlericais até ao final do século XIX.

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