Índia reduziu as infeções em mais de 90%. Como?

por Cristina Sambado - RTP
Divyakant Solanki - EPA

Há seis meses, a Índia estava a viver um dos piores momentos da pandemia de Covid-19. Doentes em estado crítico eram recusados nos hospitais e os médicos desmaiavam de exaustão. O SARS-CoV-2 espalhava-se pelos bairros mais pobres, onde vivem milhões de pessoas. O país está agora a viver um cenário muito diferente, os novos casos estão em queda, passando de mais de 90 mil infeções diárias em setembro para pouco mais de 10 mil em fevereiro.

A 9 de fevereiro, Nova Deli, a capital do país, não registou nenhum óbito pela primeira vez em quase nove meses, segundo o site COVID129INDIA, que agrega dados de fontes oficias.

Esta redução aconteceu sem medidas drásticas de confinamento, como bloqueios locais que têm sido usados na Nova Zelândia e na Austrália. O Governo indiano impôs algumas restrições de distanciamento social e ajudou os hospitais mais sobrecarregados – mas a economia reabriu, as viagens domésticas foram retomadas e a população está a regressar à vida normal.

A queda do novo número de casos não se deve à vacinação. A Índia iniciou o programa com a meta de vacinar 300 milhões de pessoas até agosto, mas está atrasado em comparação com os países mais ricos. Até agora, foram administradas menos de uma dose para cada 100 pessoas, segundo o Our World In Data, um site de agregação de dados da Universidade de Oxford.

A título de exemplo: no Reino Unido a taxa está próxima das 27 doses por 100 pessoas e nos Estados Unidos 19.

Desde o início da pandemia, a Índia reportou mais de 11 milhões de casos e 156 mil mortos. Esta queda no número de novos casos está a intrigar os especialistas que analisam vários fatores, como a população mais jovem ou a possibilidade de aumento da imunidade em áreas urbanas.

Mas a redução do número de testes realizados também não está descartada. As taxas de testagem caíram ligeiramente, o que pode levar a que os novos casos de infeção não sejam detetados. Em setembro, o país, com mais de 1,3 mil milhões de habitantes, realizava mais de um milhão de testes por dia. Em fevereiro, o número caiu para entre 600 mil a 800 mil, de acordo com o Conselho Indiano de Pesquisa Médica (ICMR).

A taxa de positividade do teste – ou seja, quantas pessoas estão a testar positivo nos testes realizados – andava em quase seis por cento em janeiro e acima dos cinco por cento em fevereiro. Uma taxa alta de positividade pode sugerir que o país não está a testar suficientemente. Para a Organização Mundial da Saúde, as taxas de positividade de testes devem ser de cinco por cento ou menos antes do desconfinamento.

Segundo a CNN, os especialistas alertam para que não se baixe a guarda, especialmente quando as novas variantes são mais contagiosas e se estão a espalhar a nível global.
Imunidade nas grandes cidades
Um dos fatores que pode ter contribuído para esta queda no número de novas infeções pode ser um aumento dos anticorpos, uma vez que “há um grande aumento de pessoas expostas à infeção e, portanto, protegidas”, afirmou Shahid Jameel, virologista da Universidade de Ashoka, à CNN.

Os investigadores ainda estão a analisar a forma como a imunidade à Covid-19 funciona. Um estudo norte-americano publicado na revista Science no início do mês sugeriu que, depois de se contrair o vírus e desenvolver anticorpos, as pessoas poderiam ficar protegidos contra um novo contágio por pelo menos oito meses.

Os inquéritos sorológicos que testam para anticorpos revelam um aumento acentuado em várias zonas indianas. A última das três pesquisas conduzidas pelo ICMR apontou para uma positividade de anticorpos de quase 22 por cento em dezembro e janeiro – três vezes mais do que em agosto e setembro quando a taxa andava entre os seis e os sete por cento.

A taxa de imunidade é maior nas cidades com mais população. Uma pesquisa realizada entre agosto e setembro revelou que mais de metade dos moradores do bairro de Mumbai pode ter sido infetada antes. E mais de metade da população de Deli foi infetada com Covid-19.

No entanto, a Índia está longe da imunidade coletiva. Pode haver imunidade populacional suficiente para retardar as infeções nas grandes cidades, mas a imunidade de grupo exigiria que uma vasta maioria da população do país fosse imune por meio de infeção ou vacinação. Os 11 milhões de casos representam menos de um por cento da população.

“A imunidade de grupo não é algo que possamos considerar em todo o país. As taxas de positividade de anticorpos variam amplamente em diferentes regiões – além das maiores cidades, a maioria das outras zonas do país provavelmente têm taxas ainda mais baixas”, acrescentou Jameel.

Apontando para pesquisas anteriores sobre anticorpos, o virologista frisa que “o número de pessoas expostas pode estar na faixa de 150 (milhões) a 900 milhões – cerca de 35 (milhões) a 400 milhões é uma expetativa mais razoável”.

Mas essa estimativa ainda é de apenas cerca de um quarto da população. Mesmo a estimativa mais liberal de 900 milhões é de 65 por cento da população, o que pode nãos ser suficiente para alcançar a imunidade de grupo.
Demografia, geografia e condições de vida

A população relativamente jovem da Índia pode ter sido outro factor que ajudou a baixar o número de casos no país, uma vez que as infeções em pessoas mais jovens tendem a apresentar sintomas mais leves e taxas de mortalidade mais baixas.

Metade da população indiana tem 25 anos e 65 por cento tem menos de 35, segundo o último censo realizado em 2011.

“Uma população mais jovem significa infeção assintomática ou doença leve, que não é testada e não aparece nos casos reportados”, realçou Jameel.

Para o virologista pode haver também um componente biológico que é conhecido com “hipótese de higiene”, que postula que ambientes extremamente limpos podem criar um sistema imunológico mais fraco. A hipótese conjetura que aqueles que vivem em locais com “maior incidência de doenças infeciosas”, como a Índia, podem desenvolver melhor imunidade, o que poderia ajudar a prevenir infeções de Covid-19 de se tornaram muito graves.

Mas a geografia também desempenha um papel, afirmou Raman Gangakhedkar, ex-cientista-chefe de epidemiologia e doenças transmissíveis do ICMR.

“É importante recordar que 70 por cento dos indianos vivem em zona rural, onde há maior ventilação e menos população. Quem vive nas zonas rurais não anda de autocarro nem de comboio. O risco é menor”, realçou Raman Gangakhedkar.

Há ainda a destacar os esforços do Governo de Narendra Modi que colocou o país num confinamento durante vários meses na primavera. Apesar de as viagens domésticas já serem permitidas na maior parte da Índia, ainda existem restrições como o uso obrigatório de máscara, o distanciamento social e limitação no número de pessoas permitidas em reuniões públicas.

“Tivemos um confinamento muito longo e fomos capazes de baixar a curva em apenas cinco a seis meses. A situação está a melhorar gradualmente”, acrescentou Gangakhedkar.

As autoridades também reforçaram os recursos a tratamentos, o que pode ter ajudado a travar as infeções mais graves e a mortalidade. O Governo dobrou a capacidade de testes e disponibilizou 300 camas adicionais em unidades de cuidados intensivos.

Apesar da queda no número de novos casos de infeção, os especialistas apelam à população para não baixar a guarda e para não confiar muito nos números oficias.

“Na Índia, temos Estados onde os dados que chegam não são confiáveis”, alertou Raman Gangakhedkar. “Não devemos elogiar os Estados que estão a reportar menos casos”.

O facto de o número de casos estar em queda a nível nacional, não significa que a situação esteja a melhorar em todas as regiões. O Estado de Maharashtra está a assistir a um ressurgimento de novas infeções e emitiu novas restrições a 19 de fevereiro, incluindo quarentenas domiciliares, multas para quem não usa máscara e o bloqueio de qualquer prédio com mais de cinco casos positivos.

O responsável do Estado de Maharashtra advertiu que poderia reimpor o confinamento se o número de novos casos diários continuar a aumentar nas próximas duas semanas.

Os especialistas consideram que esta diminuição no número de novos casos de infeção pode criar uma falsa sensação de segurança
, e afirmam que é muito cedo para relaxar as restrições e as medidas de segurança. Alertam ainda para o perigo das novas variantes.

“Há complacência ao nosso redor”, afirmou Jameel. “A proteção derivada da vacina não está disponível para a maioria, uma vez que apenas grupos selecionados estão a ser vacinados. Além disso, a segunda dose está a começar agora a ser administrada. Mas se uma variante iniciar a transmissão na comunidade, a situação pode mudar rapidamente”.

A Índia já registou 180 casos da variante do Reino Unido, e vários casos das variantes detetadas pela primeira vez na África do Sul e no Brasil.


Para Jameel, “a recuperação do pico da infeção não significa que o país esteja livre de uma segunda vaga”.

“Embora os casos e a taxa de positividade estejam a diminuir, o novo coronavírus ainda não desapareceu e continua a afetar a nossa população”, afirmou o Ministério da Saúde em comunicado.

“Temos esperança que essas variantes não provoquem situações catastróficas, mas a vigília deve continuar”, acrescenta o documento.
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