Intercalares americanas e aborto. Metade dos eleitores deverão votar face ao projeto de anulação de "Roe v. Wade"

por Inês Moreira Santos - RTP
Amira Karaoud - Reuters

A proposta de anulação do processo "Roe v. Wade", por parte do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, está a tornar metade da população norte-americana mais inclinada a votar nas eleições de meio do mandato Presidencial. A conclusão é de uma pesquisa que revela, esta quinta-feira, que 64 por cento das pessoas é contra a abolição desta decisão histórica que em 1973 tornou o aborto legal no país.

No início deste mês, o Político teve acesso a documentos não públicos e divulgou que o Supremo Tribunal dos EUA estaria a preparar-se para anular a decisão histórica de 1973 que reconheceu o direito ao aborto no país. Segundo o projeto de decisão divulgado, e escrito pelo juiz conservador Samuel Alito, o processo que há quase 50 anos sustentava que a Constituição norte-americana protegia o direito da mulher de fazer um aborto era “totalmente sem mérito desde o início”.

Acreditamos que o Roe v. Wade tem de ser anulado”, lia-se nos documentos citados pelo jornal. Para o autor, o direito ao aborto “não está protegido por qualquer disposição da Constituição” dos EUA.

Desde a publicação destes documentos, o direito ao aborto nos EUA voltou a ser um dos temas que mais atenção tem suscitado junto da opinião pública e nos corredores da política norte-americana. De acordo com uma pesquisa da NPR/PBS NewsHour /Marist, divulgada esta quinta-feira, quase dois em cada três americanos é contra a anulação do Roe v. Wade.

E agora, devido a esta polémica, quase metade dos norte-americanos estão mais inclinados a votar em novembro.

Para a pesquisa, realizada entre 9 e 13 de maio, foram inquiridos 1.304 norte-americanos adultos e concluiu-se que a proposta do Supremo Tribunal não está em “sintonia com a opinião pública” e que se se avançar com essa decisão “pode haver consequências políticas nas eleições de meio de mandato deste ano”.

“A maioria dos norte-americanos tem pouca ou nenhuma confiança na Supremo Tribunal dos Estados Unidos, o que marca uma grande mudança na opinião pública”,
lê-se na publicação.
Democratas a favor de algum tipo de restrição
De acordo com os resultados da pesquisa, 64 por cento dos norte-americanos “não acham que o Roe v. Wade deva ser anulado” e cerca de 33 por cento são a favor. Também uma pesquisa da Kaiser Family Foundation de 2020 revelava que 27 por cento apoiariam a revogação da decisão e 69 por cento se opunham.

“A opinião atual segue as linhas partidárias, mas até 34 por cento dos republicanos se opõem a anular Roe v. Wade”, concluem os autores da pesquisa.

Contudo e apesar de a maioria ser contra o projeto, sete em cada dez pessoas dizem que são a favor de algum tipo de restrição ao direito ao aborto, o que inclui 52 por cento dos democratas.

“Até 52 por cento dos democratas acham que deveriam ser impostos limites ao aborto. Apenas 17 por cento dos republicanos acreditam que o aborto nunca deveria ser permitido”
, indica o estudo.

Mas o que mais se destaca neste inquérito é que, com a “polémica proposta de decisão do Supremo Tribunal” provavelmente vai aumentar “a participação dos eleitores nas eleições de meio de mandato deste ano”. O estudo indica que 49 por cento dos norte-americanos, “incluindo metade dos eleitores, dizem que isto os tornará mais propensos a votar em novembro” e apenas quatro por cento assumem que esta questão os inclinará mais a não votar.

Entre estes, os democratas (66 por cento) afirmam estar mais inclinados a votar devido a esta questão do aborto do que os republicanos (40 por cento).Partido republicano perde votos com proposta do supremo

O mesmo estudo conclui que 47 por cento dos eleitores vão apoiar os democratas “nas eleições deste ano” e que só 42 acham que vão apoiar os republicanos. Mas, em abril, antes da divulgação dos documentos sobre o projeto de anulação do “Roe v. Wade”, 47 por cento dos eleitores apoiavam o Partido Republicano e 44 por cento o Democrata.

“Os democratas têm agora vantagem nas eleições de meio de mandato, apesar de um índice de aprovação de 39 por cento para o presidente Joe Biden”, explica o estudo.

De facto, esta polémica pode trazer consequência a nível político, uma vez que 61 por cento dos norte-americanos “se consideram a favor do direito ao aborto”, o que incluiu 88 por cento dos democratas, 32 por cento dos republicanos e 59 por cento dos independentes. Apenas 34 por cento da população se diz contra o aborto.

“No entanto, apenas cerca de um terço dos norte-americanos assume uma posição extrema no debate sobre o aborto”, continua.

Vinte e quatro por cento das pessoas acha “que um aborto deve estar disponível em qualquer momento durante a gravidez e nove por cento acredita que o aborto nunca deve ser permitido em nenhuma circunstância”. Além disso, “quase sete em cada dez (68 por cento) apoia algum tipo de restrição ao aborto”, o que inclui os 13 por cento que acham que o aborto deve ser permitido nos primeiros seis meses de gravidez, os 22 cento que acreditam que o aborto deve ser permitido durante os primeiros três meses de gravidez, os 23 por cento que dizem que o aborto deve ser permitido em casos de violação, incesto ou para salvar a vida da mulher grávida e os 10 por cento que diz que o aborto deveria ser permitido apenas para salvar a vida da grávida.

Os autores do estudo destacam ainda que a proporção de norte-americanos que apoiam o aborto “em qualquer circunstância” subiu de 18 por cento em 2019, sendo que a percentagem de pessoas que se opõe mantém-se praticamente inalterada.

Se esta proposta do Supremo avançar, os EUA vão voltar a uma situação semelhante à que existia antes de 1973, quando cada Estado era livre de proibir ou autorizar a realização de abortos. E dada a grande divisão geográfica e política sobre a questão, espera-se que metade dos Estados, especialmente no sul e no centro conservadores, proíbam rapidamente o procedimento.

Recorde-se que o Supremo Tribunal foi profundamente reformulado pelo ex-presidente Donald Trump, que em cinco anos nomeou três juízes conservadores, solidificando a maioria conservadora da instância. E, desde setembro, o novo Tribunal tem enviado vários sinais a favor dos oponentes ao aborto.

Primeiro, recusou-se a impedir a entrada em vigor de uma lei do Texas a limitar o direito ao aborto às primeiras seis semanas de gravidez, por oposição a dois trimestres ao abrigo do atual quadro legal. Durante uma revisão de dezembro de uma lei do Mississippi, também a questionar o prazo legal para o aborto, a maioria dos juízes do Supremo deixou claro que estavam preparados para alterar ou mesmo derrubar, por completo, o princípio estabelecido por Roe v. Wade.

O documento apresentado pelo Politico está relacionado com este caso e a publicação é uma fuga rara para o Supremo Tribunal, onde o sigilo das deliberações quase nunca foi violado.
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