Irão rearma programa de mísseis com abastecimento da China

por Cristina Sambado - RTP
Majid Asgaripour/WANA (West Asia News Agency) via Reuters

Fundeou na quinta-feira, ao largo do porto iraniano de Bandar Abbas, o primeiro de dois navios que transportaram mil toneladas de um produto químico de fabrico chinês. Poderá ser um componente essencial do combustível para o programa de mísseis militares do Irão.

O navio Golbon deixou o porto chinês de Taicang há três semanas, transportando a maior parte de um carregamento de mil toneladas de perclorato de sódio, o principal precursor na produção do propulsor sólido que alimenta os mísseis convencionais de médio alcance do Irão, avançaram à CNN duas fontes europeias.O perclorato de sódio poderá permitir a produção de propulsor suficiente para cerca de 260 motores de foguete sólidos para os mísseis Kheibar Shekan do Irão ou 200 dos mísseis balísticos Haj Qasem.

O carregamento surge num momento em que o Irão tem sofrido uma série de reveses regionais com a derrota coletiva dos seus aliados: a queda de Bashar al-Assad na Síria e as perdas do Hezbollah no Líbano.

Na sequência do ataque israelita às instalações de produção de mísseis do Irão, em outubro de 2024, alguns peritos ocidentais consideraram que poderia demorar pelo menos um ano até que o Irão pudesse retomar a produção de propulsores sólidos. Esta entrega aponta para que o Irão não esteja longe - ou que possa já estar de volta – à produção de mísseis próprios.

O carregamento foi comprado em nome do Departamento de Aquisições da Organização da Jihad para a Autossuficiência (SSJO), parte do organismo iraniano responsável pelo desenvolvimento dos mísseis balísticos.


O segundo navio, Jairan, ainda não foi carregado nem partiu da China, sendo ambos operados pela empresa Islamic Republic of Iran Shipping Lines (IRISL), disseram as mesmas fontes à cadeia televisiva norte-americana.
O Jairan deverá transportar o restante das mil toneladas de perclorato de sódio para o Irão. O Golbon deixou o porto de Taicang com destino ao Irão em 21 de janeiro.
Ainda segundo a CNN, as fontes não sabiam se o Governo chinês tinha conhecimento dos carregamentos antes de os meios de comunicação social noticiarem a sua movimentação no final de janeiro. O fornecimento de perclorato de sódio em si não é ilegal, nem viola as sanções ocidentais.

Em resposta à CNN, o Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros afirmou que “não tinha conhecimento das especificidades do caso” mencionado e reiterou que se opunha a “sanções unilaterais ilegais” e a “difamações arbitrárias e acusações que carecem de provas”.

A China tem respeitado sistematicamente os controlos das exportações de produtos de dupla utilização, em conformidade com as suas obrigações internacionais e com as leis e regulamentos nacionais”, acrescenta o comunicado, frisando que “o perclorato de sódio não é um produto controlado pela China e a sua exportação seria considerada um comércio normal”.
Sanções pela porta das traseiras
Os Estados Unidos e o Reino Unido impuseram sanções contra a Islamic Republic of Iran Shipping Lines, tendo o Departamento de Estado afirmado que a empresa é a “linha de navegação preferida dos proliferadores e agentes de aquisição iranianos”.

O Tesouro britânico afirmou que a empresa estava “envolvida em atividades hostis” do Irão e salientou as suas ligações ao sector da defesa iraniano.
Tanto a Golbon como a Jairan estão sujeitas a sanções dos EUA.
A China continua a ser um aliado diplomático e económico do Irão, que foi alvo de sanções, condenando as sanções “unilaterais” dos EUA contra o país e acolhendo Teerão nos blocos internacionais liderados por Pequim e Moscovo, como a Organização de Cooperação de Xangai e os BRICS.

A China também continua a ser, de longe, o maior comprador de energia do Irão, embora não tenha relatado compras de petróleo iraniano nos seus dados oficiais de alfândega desde 2022, de acordo com analistas.

Apesar dos laços históricos da China com o setor de defesa do Irão, observadores dizem que Pequim reduziu os laços de segurança na última década, pois busca fortalecer as relações com a Arábia Saudita e outros Estados do Golfo. No entanto, nos últimos anos, os EUA sancionaram uma série de entidades chinesas por alegadas funções de apoio à produção de drones militares iranianos.

Os recentes exercícios navais conjuntos entre a China, o Irão e a Rússia assinalaram também um potencial aprofundamento dos laços estratégicos entre governos.
Ingrediente-chave
Embora o Irão necessite de um propulsor sólido para uma série de mísseis, incluindo armas de defesa aérea mais pequenas, a maior parte dessas entregas seria provavelmente destinada ao programa de mísseis balísticos do Irão, revelou Fabian Hinz, investigador do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.Apesar de o comércio de perclorato de sódio não ser restringido pelas sanções ocidentais, pode ser quimicamente transformado em perclorato de amónio - um combustível e oxidante que é um produto controlado.

O perclorato de amónio é o material utilizado nos propulsores sólidos dos foguetões do vaivém espacial”, afirmou Andrea Sella, professor de química inorgânica na University College London, à estação televisiva norte-americana.

“Não existem realmente muitas alternativas” para as quais o produto químico presente nas entregas chinesas possa ser utilizado, para além dos propulsores de foguetões, fogo de artifício e combustível, esclareceu. “Os percloratos têm uma gama de utilizações bastante limitada”, acrescentou.

Segundo Andrea Sella, o aumento dos controlos sobre os percloratos no Ocidente fez com que a China se tornasse um importante fornecedor alternativo de tais produtos químicos.

A China é há muito tempo “a principal fonte de perclorato de sódio para os programas de mísseis do Irão, pelo menos desde meados da década de 2000”, disse à CNN Jeffrey Lewis, diretor do Programa de Não Proliferação da Ásia Oriental do Instituto de Estudos Internacionais de Middlebury.

“Esta é apenas a última remessa de um padrão de décadas”, acrescentou Lewis.
Problemas de abastecimento
O analista de defesa Fabian Hinz afirmou ainda que, apesar de o Irão se ter vangloriado anteriormente da sua capacidade de produzir perclorato de amónio, esta entrega indicia estrangulamentos na cadeia de abastecimento, uma vez que o fornecimento interno de precursores não tem sido capaz de satisfazer as necessidades de produção de mísseis.

É um problema que até países como os EUA podem enfrentar, acrescentou.

Hinz afirmou que a infraestrutura de produção de propulsores sólidos do Irão “expandiu-se dramaticamente nos últimos anos - e potencialmente mesmo desde 7 de outubro (2023)”, com a construção de novas instalações e a ampliação das existentes.Os mísseis Kheibar Shekan têm um alcance de cerca de 1.420 quilómetros, com os seus primos Haj Qasem capazes de atingir alvos a cerca de 1.450 quilómetro de distância, segundo a fonte dos serviços secretos ocidentais. Embora não sejam as armas tecnicamente mais avançadas do arsenal iraniano, o seu alcance torna-as valiosas para ataques a Israel.

O investigador do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos revelou ainda que variantes destes mísseis foram utilizadas pelos Houthis apoiados pelo Irão no Iémen contra Israel, apesar de a distância ultrapassar ostensivamente o alcance padrão dos mísseis.

Modificações na massa da ogiva ou nas unidades de propulsão secundárias poderiam aumentar o seu alcance.

O propulsor sólido também é utilizado nos mísseis de curto alcance do Irão - como os que foram utilizados no passado contra as bases americanas na região e nas exportações para a Rússia, recordou Hinz. Os maiores e mais potentes mísseis balísticos do Irão utilizam normalmente propulsor líquido.

Segundo as Forças de Defesa de Israel, os destroços de pelo menos um míssil Kheibar Shakan foram recuperados na sequência do ataque iraniano a 1 de outubro de 2024 contra o país.

A análise de uma das fontes ocidentais confirmou que cerca de 50 mísseis de médio alcance com propulsão sólida foram disparados contra Israel pelo Irão neste ataque.

Acredita-se que o arsenal do Irão tenha “mais de três mil mísseis balísticos”, expôs o general da Força Aérea dos EUA Kenneth McKenzie ao Congresso em 2023 - mas os números exatos de cada tipo de míssil são desconhecidos.

Um funcionário da inteligência ocidental disse à CNN que, embora as agências governamentais relevantes dos EUA estejam cientes da entrega, há pouca preocupação com a remessa. Se o Irão canalizar os produtos químicos para a produção de combustível para mísseis, especialmente em armas destinadas à Rússia, isso será motivo de maior preocupação.

O Governo iraniano optou pelo silêncio.
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