"Isadora": a arte e a revolução

por RTP
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"Isadora" é um filme de 1968, rodado no ambiente do Maio francês. Partindo de uma reconstituição biográfica, acaba por reflectir largamente sobre a relação fecunda, atormentada e tempestuosa entre a arte e a revolução.

O filme de Karel Reisz narra a vida de Isadora Duncan (1878-1927), desde os seus começos como bailarina - clássica, mas ao mesmo tempo inovadora -, até ao seu encontro com a revolução russa, que no momento mais improvável a convida a abrir uma escola de dança.

Isadora Duncan foi considerada desde o início da sua carreira como uma bailarina de talento extraordinário. Ao afastar-se rapidamente dos cânones da dança clássica, não deixou de exercer uma enorme fascinação sobre os seus contemporâneos. Mais tarde, não faltaria quem, em jeito de balanço, a considerasse a criadora da dança moderna.

A sua irreverência e iconoclastia, a liberalidade do seu modo de vida numa época e em ambientes de costumes conservadores - nada a impediu de singrar nos favores do público e da crítica.

Isadora foi casada com o multimilionário Paris Singer, de quem teve dois filhos, além de um que trazia de uma ligação anterior. Durante o casamento com Singer, investiu largamente no ensino da dança. Mas veio depois a divorciar-se do industrial e a retomar uma intensa actividade profissional, com frequentes digressões pela Europa e Estados Unidos.

Em 1921, recebeu um convite do governo soviético para se instalar na Rússia e aí criar uma escola de dança. O convite pareceria surpreendente, por vir num momento marcado por privações, carências, massacres e epidemias, com os últimos fogos ainda por extinguir de uma guerra civil que custara pelo menos quatro milhões de vidas.

Mas a revolução esfomeada investia na arte e na cultura ao mesmo tempo que lutava para alimentar as cidades e campos. À frente do Comissariado do Povo para a Cultura, Lunacharsky era o interlocutor adequado para os artistas de todo o mundo que se deixavam fascinar pelo clarão libertário que lhes chegava do Leste.

No filme de Reisz, o papel de Isadora é desempenhado por Vanessa Redgrave (na foto, abaixo). A actriz mostra uma espantosa versatilidade, desde o papel da Isadora lisonjeada por todas as plateias, de todas as classes, à burguesa bem casada mas com veleidades reformadoras, à bailarina boémia e rebelde.

E, finalmente, Redgrave, ao tempo militante trotskista, encontra o segmento do seu desempenho em que mais se identificava com a personagem - aquele em que Isadora aceita o convite, adere à revolução e mete ombros à criação de uma escola de dança. Aí se depara com crianças que em cada dia precisam de conseguir as rações mínimas que lhes garantam a sobrevivência.

O ambiente da Rússia revolucionária é tratado de forma admirável, abrangendo um leque amplo de situações. Por um lado, há o voluntarismo de Isadora, a esforçar-se por ensinar dança em pleno inverno, em salas que não têm aquecimento. E há o entusiasmo de públicos que nunca tiveram acesso à arte e ficam rendidos ao talento da bailarina.

Mas, por outro lado, há o ambiente cada vez mais fechado dos artistas, que se vão tornando tanto mais estranhos ao grande público quanto mais a chama da revolução vai esmorecendo.

É essa a fase da paixão pública e notória entre Isadora e o mítico poeta Sergei Essenin (na foto, em baixo). No filme, é mostrada a digressão de ambos nos Estados Unidos, a defesa que fazem ambos do regime soviético e a hostilidade com que os acolhe um público mais atento às simpatias políticas dos artistas do que aos méritos da sua dança ou da sua poesia.

O desfecho da história é a morte de Isadora num acidente, na Riviera francesa, estrangulada pela sua própria écharpe que se enrola numa das rodas do carro em que viaja.

O acidente ocorre em 1927, quando Isadora está a ponto de escrever as suas memórias. Ela continua na altura a ser cidadã soviética, mas, sintomaticamente, escolheu já viver em França. O passaporte que conserva é um eco do tempo em que a revolução acarinhava as artes e não enverdara ainda pelos dogmas do jdanovismo.
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