Já morreram mais norte-americanos devido à covid-19 do que há um século com a gripe espanhola

por Inês Moreira Santos - RTP
Shannon Stapleton - Reuters

Um século depois da pandemia do vírus influenza (vulgarmente referida como a gripe espanhola), os Estados Unidos têm agora o registo de quase 700 mil mortos devido à Covid-19. Esta semana, o número de óbitos associados ao novo coronavírus ultrapassou a estimativa de mortes registadas entre 1918 e 1920.

Durante quase dois anos, a gripe espanhola matou cerca de 675 mil norte-americanos, segundo a estimativa dos Centros para o Controlo e Prevenção da Doença. Desde que foi identificado o novo coronavírus, em dezembro de 2019, esse número já foi ultrapassado em mortes por covid-19 no país, de acordo com dados divulgados pela Universidade Johns Hopkins.

Com a variante Delta, as mortes nos EUA atingem mais de 1.900 por dia em média - o nível mais alto desde o início de março - e o número de mortes no país já ultrapassou as 679 mil. A população norte-americana há um século era apenas um terço do que é hoje, o que significa que a pandemia da covid-19 atingiu uma faixa muito maior e de forma mais mortífera em todo o país.

Porém, e considerando as duas épocas, a pandemia da covid-19 é uma "tragédia colossal", tendo em conta os avanços no conhecimento científico desde então, apesar da falta de adesão por parte da população à vacinação.

Ao contrário do que acontecia há 100 anos, há vacinas que protegem contra a forma grave da doença provocada pelo novo coronavírus. No entanto, as dúvidas e as incertezas quando à segurança e eficácia das vacinas está a condicionar o processo de imunização nos EUA - atualmente, cerca de 36 por cento das pessoas com mais de 12 anos ainda não foram totalmente vacinadas.

"Grandes interesses da sociedade norte-americana - e, pior, os governantes - ignoraram isto"
, lamentou em declarações à Associated Press o historiador médico Howard Markel, da Universidade de Michigan, sobre a oportunidade de vacinar todos os elegíveis até agora.

A verdade é que, desde que Joe Biden assumiu a Presidência norte-americana, o processo de vacinação acelerou e contribuiu para a diminuição da taxa de óbitos devido à covid-19 no país, embora os casos tenham aumentado novamente em agosto com a disseminação da variante Delta. Além disso, o verdadeiro número de mortos pode ser muito maior do que o total oficial porque, como na pandemia anterior, é fruto de uma estimativa.
Covid-19 mais mortal que gripe espanhola?

A pandemia da gripe espanhola matou 50 milhões de pessoas em todo o mundo, numa época em que o planeta tinha um quarto da população que tem hoje. E, até ao aparecimento da covid-19, era considerada a pior pandemia da história.

As mortes globais por covid-19 estão, atualmente, na casa dos 4,6 milhões. Nesse sentido, o impacto relativo da pandemia do século XX terá sido mais letal do que o da pandemia que agora enfrentamos, visto ter afetado uma porção maior da população.

Mas, nos Estados Unidos, a pandemia da covid-19 tornou-se a mais mortífera da história do país, ultrapassando as mortes atribuídas à gripe espanhola (em termos absolutos). Isto é, a gripe espanhola só ultrapassa a atual pandemia em termos de percentagem de mortos, porque a população norte-americana era três vezes menor.

Os especialistas consideram que, de acordo com a STAT News, a manter-se a taxa de infeção, de mortalidade e de vacinação nos valores atuais, a covid-19 será mesmo o evento mais mortífero dos EUA, ultrapassando os cálculos mais pessimistas do número de mortes durante a Guerra Civil (cerca de 750 mil).

A gripe de 1918, provocada pelo virus influenza, seria erradamente denominada gripe espanhola por ter sido confirmada pela primeira vez em Espanha. Terá sido disseminada pela maior mobilidade devido à Primeira Guerra Mundial. Na época não havia vacina para evitar sintomas mais graves nem medicamentos para curar a infeção. Ainda assim, a mobilidade era mais reduzida e a população menor.

No século XXI, as viagens de avião constantes e as migrações em massa ameaçam a todo o momento aumentar o número de vítimas da covid-19. Para além das novas variantes que têm surgido, a maioria da população mundial não está vacinada.

"Temos muito mais controlo da infeção, muito mais capacidade de apoiar as pessoas que estão doentes. Temos medicina moderna", disse disse Ann Marie Kimball, professora de epidemiologia aposentada da Universidade de Washington. "Mas temos muito mais gente e muito mais mobilidade. O receio é que, eventualmente, uma nova variante contorne o alcance da vacina".
Vacinação é solução?
À semelhança do vírus influenza, o SARS-CoV-2 pode não ser completamente erradicado. Aliás, a comunidade científica prevê mesmo que torne uma doença sazonal com sintomas ligeiros, à medida que o ser humano se vai tornando imune, ou mais resistente, com a vacinação e a infeção deste vírus - o que pode demorar algum tempo.

"Esperamos que seja como apanhar uma gripe ou constipação, mas não temos garantias", explicou Rustom Antia, biólogo da Emory University, que sugere um cenário otimista em que isso pode acontecer dentro de alguns anos.

Para agravar o cenário atual, os especialistas acreditam que o próximo Inverno traga novos surtos, segundo o modelo da Universidade de Washington, que estima que morram mais 100 mil norte-americanos até janeiro de 2022, o que pode elevar o número total de vítimas nos EUA para 776.000 óbitos.

Em todo o mundo, só cerca de 43 por cento da população já foi vacinada com pelo menos uma dose, de acordo com os dados do Our World in Data.

"Sabemos que todas as pandemias chegam ao fim"
, recordou Jeremy Brown, diretor de investigação de emergência do National Institutes of Health. "O problema é que podem fazer coisas terríveis enquanto estão ativas".

A covid-19 podia ter sido menos letal nos Estados Unidos se mais pessoas tivessem sido vacinadas mais cedo, "e ainda temos a oportunidade de reverter isso".

"Muitas vezes não vemos a sorte que temos por não dar valor a estas coisas", continuou.

Para quem recusa a vacinação e espera que com uma infeção do SARS-CoV-2 fique imune ao vírus, Kimball relembrou: "O problema é que tem de sobreviver à infeção para adquirir a imunidade. É mais fácil ir à farmácia e tomar uma injeção".

A vacinação e a sobrevivência à infeção são os principias fatores para melhorar o sistema imunológico. Além disso, os bebés amamentados também ganham alguma imunidade através das mães.

Nesse cenário otimista, as crianças em idade escolar podem desenvolver apenas doenças leves que preparam o sistema imunitário. À medida que crescem, as crianças transportam a memória da resposta imunológica, de modo que, quando forem mais velhas e vulneráveis, o novo coronavírus não seja mais perigoso do que a gripe normal. O mesmo serve para os adolescentes vacinados atualmente: o seu sistema imunitário ficará mais forte com a vacinação.

"Todos nós vamos ser vacinados. O problema é se as infeções são graves", disse Rustom Antia.

Isso aconteceu com vírus da gripe H1N1, o reponsável pela pandemia de 1918. Quando começou a haver muitas pessoas imunes, acabou por enfraquecer através de mutações. Ainda hoje o H1N1 circula entre a comunidade, mas há imunidade adquirida através da infeção e da vacinação.
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