Manon Garcia expõe banalidade do mal nas violações sem remorso do caso Pelicot em tribunal
"É possível viver com homens?", questiona a filósofa francesa Manon Garcia, que acompanhou o julgamento dos violadores de Gisèle Pelicot e se surpreendeu ao constatar que eram homens absolutamente normais e sem remorsos, expondo a "banalidade do mal".
A pergunta da autora dá mote ao livro "Viver com homens. Reflexões sobre o caso Pelicot", publicado este mês em Portugal pela Zigurate, em que Garcia descreve o que viu, ouviu e sentiu durante o julgamento dos 50 homens que Dominique Pelicot recrutou através da internet para violar a mulher, drogada e adormecida, num estado quase comatoso, ao longo de dez anos.
Antecipando-se à analogia que sabia que iria ser feita entre o seu livro e "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt, Manon Garcia estabelece o paralelismo, precisamente pela ideia de "banalidade do mal", com que a filósofa abordou o julgamento do dirigente das SS de Hitler, responsável pela deportação e morte de milhões de judeus.
Em entrevista à agência Lusa, a filósofa feminista e política explica que, tal como Arendt descreveu no julgamento de Adolf Eichmann, também no caso Pelicot encontrou homens "realmente normais", de idades, origens e profissões muito diversas, incapazes de explicar o que fizeram e dizendo "coisas muito banais" sobre a violência cometida.
Estima-se que tenham sido mais de 80 violadores, entre 2011 e 2020, embora apenas 54 tenham sido identificados.
"Se um só homem, numa pequena comuna como Mazan, consegue fazer chegar a sua casa não menos de setenta homens que vivem num raio de menos de cinquenta quilómetros (o `site` Coco funciona por geolocalização, e Dominique Pelicot queria garantir que os homens chegariam depressa), quantos homens em França, se a ocasião se apresentar, estarão dispostos a violar uma mulher inconsciente?", questiona Manon Garcia, no livro.
Os abusos foram gravados, gerando cerca de 20 mil fotos e vídeos, apresentados no julgamento, tornando-o um dos casos mais documentados e ao mesmo tempo "mais explícitos e aterradores" da justiça francesa.
Apesar da sua experiência profissional, sobretudo nos conceitos de submissão e consentimento, Manon Garcia confessa o impacto emocional intenso que o julgamento teve em si: "Pergunto é o que se passa com as pessoas que foram lá, viram os vídeos, ouviram as coisas que estes tipos estavam a dizer e saíram de lá inalteradas. Acho que têm realmente um problema de como o mundo não ressoa nelas".
A presença física no tribunal trouxe uma dimensão inédita à sua análise, já que nada a surpreendeu racionalmente, "mas fez toda a diferença experimentá-lo e estar lá com o corpo".
Em certo momento, Manon Garcia viu um homem atraente, aproximadamente da sua idade, e que admite que teria sido o tipo de homem por quem se apaixonaria quando tinha 18 anos.
"Então apercebi-me de que ele era um dos acusados... Realmente há esta coisa de - eu sei que ando a escrever isto há 10 anos - os violadores serem homens normais. Eles são os homens da porta ao lado, mas ter esta experiência de encontrar alguém desejável e que é tudo o que odiamos e condenamos, é fisicamente algo que muda a nossa maneira de ver as coisas".
Os violadores tinham entre 26 e 74 anos, eram "homens de família", casados, com filhos, e exerciam as mais variadas profissões, de jornalista a motorista, soldado, trabalhador agrícola, técnico de informática, mas quase todos pareciam "envergonhar-se muito pouco do que fizeram" e "prontos a encontrar desculpas".
Neste ponto, Garcia analisa a cisão da personalidade, como se em cada um existisse um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde.
Para a investigadora, a sexualidade masculina está estruturada de tal forma que permite que muitos homens achem "perfeitamente aceitável violar uma mulher idosa em coma".
"Muitos usam como desculpa que fizeram aquilo porque na altura a sua mulher ou parceira não queria ter sexo com eles, e pensamos: `Mas, então, estás a dizer-nos que quando violas a Gisèle Pelicot, para ti é um bom substituto para quando tens sexo com a tua mulher? Porque para mim, do ponto de vista emocional, mas também do ponto de vista filosófico, são duas experiências radicalmente diferentes, certo? Por isso, o facto de estes homens o dizerem publicamente e tomarem como certo que era o mesmo para eles, é aterrador".
E o facto de juízes e advogados "os compreenderem claramente" tornou o caso ainda mais assustador, com comentários como "há violações e violações", sugerindo que as agressões a Gisèle Pelicot "não eram verdadeiras violações".
Recordando um momento particularmente incómodo, Manon Garcia conta como um juiz questionou um arguido sobre a sua incapacidade de ter uma ereção, como era visível num vídeo.
"Mas nunca perguntou aos outros todos por que é que ficaram com uma ereção. Essa é que é a questão. Mesmo para ele [advogado], a falta de ereção parece não ter nada a ver com um cenário muito pouco excitante. O que eu quero saber é como é que eles se podem excitar com uma mulher velha, em coma, que parece estar morta".
Outro detalhe que afirma tê-la impressionado foi o som de Gisèle a ressonar, "muito alto e com regularidade", o que demonstrava sem sombra de dúvida que estava a dormir profundamente. Eles pegavam-lhe numa mão, largavam e o braço caía".
Gisèle Pelicot chegou a dizer em tribunal: "Estou entre o lixo e a boneca", recorda a autora, destacando que, "no entanto, eles acham isto excitante", e esta realidade "precisa de nos aterrorizar verdadeiramente".
"Isso não significa que qualquer homem cometa tais crimes, mas revela algo no desejo masculino e na masculinidade, que faz com que todos os homens se possam reconhecer ali. Penso que todos os homens já participaram em coisas muito menos graves, mas que estão numa linha contínua com isto. O livro é um convite aos homens para que reflitam sobre isto".
"A violação é política" -- afirma Manon Garcia -, porque a violência sexual não é apenas um ato individual, mas parte de uma lógica social que ensina aos homens que têm direito aos corpos e trabalho das mulheres, o que torna inevitável questionar o papel da sociedade.
"Os homens que nunca lavam a roupa têm algo em comum com os que violaram Gisèle Pelicot: acham que as mulheres lhes devem serviços e desejo sexual", considera Manon Garcia, recordando que esta sua analogia "irritou muita gente" na Alemanha (onde vive e trabalha atualmente).
A filósofa critica ainda o conceito de "boa vítima", ou seja de que certas vítimas são mais "aceitáveis" ou dignas de empatia do que outras, já que no julgamento a idade de Gisèle (tinha 71 anos quando o julgamento começou, em setembro de 2024) foi utilizada para reforçar a perceção de que os agressores eram especialmente maus.
"O preconceito de idade faz parecer que a violência contra mulheres sexualmente ativas é de algum modo justificável. A `boa vítima` é, na verdade, uma construção política que protege as normas sociais existentes", explica.
No fundo, mostra que o que torna as mulheres vítimas fáceis -- usarem roupa `sexy`, beberem álcool, terem vários parceiros sexuais -- é exatamente o mesmo que faz com que não sejam consideradas vítimas em tribunal.
Segundo a autora, compreender a violação como política, implica reconhecer que os atos sexuais violentos estão ligados a estruturas de poder e desigualdade, não apenas a impulsos individuais.
Por isso, para Manon Garcia, a transformação exigida pelo feminismo implica perder certos privilégios, mas permite ganhar algo maior, que é a possibilidade de relações verdadeiramente recíprocas.
Os homens que tratam as mulheres como criadas perdem a "verdadeira alegria que é estar numa relação com alguém que é igual a nós, que amamos, com quem construímos coisas, com quem temos uma verdadeira reciprocidade".
"Sim, perde-se algo" -- reconhece - "mas perde-se algo que não era assim tão bom, para se poder construir algo novo".
Quando decidiu publicar o livro, Manon Garcia "queria que as pessoas tivessem elementos para se decidirem sobre o consentimento, sobre a masculinidade, sobre a submissão feminina, sobre a submissão química, sobre a violação".
"Eu não quero que [os leitores] tirem nada disto. Quero que eles tenham ferramentas para pensar o mundo melhor".