May e Corbyn: entre o Brexit e o Remain

Não restam grandes dúvidas de que a convocação de um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia (UE), sem um plano de contingência que suportasse uma eventual saída, foi um dos actos mais irresponsáveis praticados por um governante britânico.

Opinião de Filipe Vasconcelos Romão - Comentador Antena 1 e RTP de Assuntos Internacionais /
Reuters

A passagem do anterior primeiro-ministro, David Cameron, pelo poder não passará, assim, à história por boas razões e a forma como desapareceu de cena prova que o próprio tem consciência do seu “legado”. Se Cameron não saiu bem desta história, a facção conservadora que liderou a campanha pelo Brexit não saiu melhor. Os eurocépticos não tinham qualquer projecto definido, simplesmente porque nunca terão pensando que poderiam vencer. Inicialmente, o referendo era sobretudo um ajuste de contas interno do Partido Conservador.

Em poucas semanas, ficou patente a confrangedora ignorância e a irresponsabilidade de figuras como Boris Johnson ou Nigel Farage. Em quase três anos, não foram capazes de propor uma ideia, um projecto, uma alternativa realista ao que Theresa May, a primeira-ministra que assumiu o poder depois da fuga de Cameron, foi negociando com a União Europeia. A política da terra queimada e o vazio foram o programa dos eurocépticos, como o demonstram as declarações e entrevistas em que ainda se vão desdobrando por estes dias de enormes incertezas.
Grandes erros
A ideia de que a saída do Reino Unido da União Europeia seria um processo relativamente simples era uma mentira óbvia. Só um profundo desconhecimento (ou má fé) acerca do processo de integração poderá ter levado alguém a acreditar que abandonar um mercado único se faz com simplicidade e sem consequências. Nos últimos anos, os governantes europeus estiveram sobretudo preocupados com a gestão da zona euro/união monetária (crise das dívidas soberanas) e com o Espaço Schengen (refugiados e outras migrações). Estes protagonismos e o facto de a dinâmica comercial ser aquela em que a UE melhor funciona (logo a que suscita menos problemas) afastaram dos holofotes as áreas em que a Europa beneficia de uma maior integração. E, ao contrário do que por vezes nos querem fazer crer, o Reino Unido estava nos espaços de maior integração desde 1973.

Entre 1973 e 2016, os britânicos foram integrando a sua economia, primeiro, na Comunidade Económica Europeia (CEE) e, depois, na UE. Com esta integração, tornaram-se participes de um mercado único no quadro do qual transferiam soberania e passaram a fazer parte de um edifício comum do qual é muito difícil desvincular-se sem um desmoronamento. Os eurocépticos, durante muito tempo, venderam a ilusão de que seria fácil abandonar o barco europeu. A crise das dívidas soberanas, numa UE cada vez mais questionada, poderá ter contribuído para que uma ala mais radical do Partido Conservador e o UKIP (United Kingdom Independence Party) considerassem que um processo de saída do Reino Unido conduziria a Europa ao caos. A ala mais moderada do Partido e o primeiro-ministro David Cameron, por outro lado, terão pensado que esta seria uma boa oportunidade para fechar o debate interno e, ao mesmo tempo, ganhar algum ascendente no debate permanente entre o país e os seus parceiros europeus. Nada mais errado.

A política britânica está, assim, exclusivamente centrada na questão do Brexit desde 2015. O estável e conservador (na acepção mais ampla da palavra) Reino Unido transformou-se num país em sobressalto permanente e sem margem para uma normalização política. E um país não pode viver em estado de excepção executivo e legislativo, sobretudo num contexto tão complexo como o actual. A incerteza é o maior dos inimigos para a economia e, por inerência, para os cidadãos.

O tempo de Theresa May parece, hoje, esgotado. Foi superada pela tarefa de que foi incumbida em 2016, como qualquer outra pessoa, em circunstâncias idênticas, teria sido. No início de 2019, a dois meses da data formal da saída, ainda ninguém sabe qual será o tipo de relacionamento entre o Reino Unido e a UE (modelo norueguês? união aduaneira? Acordo com país terceiro?). A necessidade de gerir com pinças a futura fronteira entre as duas irlandas e a situação dos cidadãos europeus no Reino Unido e dos cidadãos britânicos na UE são as provas mais evidentes de que o processo sofrerá atrasos. E, à medida que o tempo passa, vai ganhando força a ideia de que o processo poderá mesmo ser total ou parcialmente revertido.
Trabalhismo
O Partido Trabalhista, por seu lado, teve uma atitude errante em todo este processo. Ao seu último ciclo de poder, entre 1997 e 2010, seguiu-se uma penosa travessia no deserto que já vai em nove anos de oposição. Jeremy Corbyn conquistou o partido em 2016, com uma estratégia de ruptura em relação ao que restava do velho “novo trabalhismo” de Tony Blair e de Gordon Brown. Com um apoio sólido entre as bases (militantes e simpatizantes) e sindicatos, entrou em ruptura com as elites do partido, forjadas durante os anos de Blair e Brown, tradicionalmente alinhadas com a União Europeia. Corbyn representa, assim, um novo “velho trabalhismo”, vinculado ao sindicalismo e com posições marcadamente à esquerda (que incluem nacionalizações de algumas empresas públicas), e com grandes desconfianças acerca da integração europeia. Convirá, a este respeito, ter em conta que o primeiro referendo acerca da presença do Reino Unido na então CEE, em 1975, foi desencadeado por um governo trabalhista pelo receio das consequências que adviriam da participação no mercado comum para os sectores agrícola e industrial britânicos.

Durante os dois últimos anos, Jeremy Corbyn tentou não se comprometer com uma questão que exige, mais do que tudo, compromisso. Os relativamente inesperados bons resultados que obteve nas eleições gerais de 2017 – 262 deputados e 40% dos votos –, conjugados com as dificuldades de Theresa May em negociar um acordo com a UE e manter a coesão do Partido Conservador, permitiram que assumisse a imagem de putativo primeiro-ministro. O grande constrangimento à afirmação de Corbyn tem sido, porém, a sua indefinição e a ideia que se generalizou de que o líder do principal partido da oposição não tem um posicionamento claro a respeito do problema que monopoliza a política do país.

O resultado da votação parlamentar sobre o acordo com a UE, na semana passada, obrigou Corbyn a materializar a moção de censura que ameaçava apresentar há muito. A maior derrota infringida pela Câmara dos Comuns a um governo em funções teria que ter uma consequência simbólica. No entanto, a coligação negativa registada vinte e quatro horas antes não se repetiu e o chumbo à proposta trabalhista atenuou ligeiramente o peso da semana negra de Theresa May. No que respeita aos trabalhistas, todo este processo serviu para confirmar que o partido é mais fiel à Europa do que ao seu líder, o que poderá forçar Corbyn, mais tarde ou mais cedo, a “vestir a camisola” de um novo referendo.

Parece, por agora, evidente que o Reino Unido não está em condições de abandonar a União Europeia em Março. Também é cada vez mais claro que existe uma maioria parlamentar que se opõe acerrimamente a uma saída sem acordo e que poderá preferir atrasar o processo a arriscar ser responsabilizada pelo previsível caos que poderia emergir do dia 30 de Março. Por outro lado, este mínimo múltiplo comum (não sair sem acordo) está a permitir ao parlamento assumir o controlo do processo em detrimento de um governo derrotado e paralisado. As próximas semanas serão decisivas para sair do impasse. Os trabalhistas já reconhecem explicitamente a pertinência de uma nova consulta. Caso Corbyn vista a camisola, mesmo contra as suas convicções, poderá acabar por se converter no primeiro-ministro do Remain
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