Milhões de chineses cristãos celebram fé em silêncio

Pequim, 22 dez (Lusa) - Volvidos quatro séculos desde a história que inspirou o filme "Silêncio", sobre dois padres jesuítas portugueses no Japão, o cristianismo continua a ser encarado com cautela noutro país asiático, ainda hoje adverso à influência externa.

Lusa /

Em entrevista à Lusa, um padre europeu explica os desafios de uma pregação proibida. Chegou há três anos para pregar o evangelho na China. Um dia, viu a polícia entrar na igreja enquanto presidia a Missa.

"Pensei: estou feito, estou preso", recorda à agência Lusa.

Foi só um susto: os polícias, apesar de fardados, estavam ali para ouvir a palavra do senhor, fazendo ouvidos moucos às ordens de Pequim.

Na China, as manifestações católicas são apenas permitidas no âmbito da Associação Patriótica Chinesa, a igreja católica aprovada pelo Estado e independente do Vaticano.

O Partido Comunista Chinês, que governa o país desde 1949, proíbe os seus membros - mais de 80 milhões - e os funcionários públicos de seguir qualquer religião.

"Se forem cristãos, o governo deve saber, mas não podem então ser polícias", exemplifica o padre. "Ou então são-no, mas clandestinamente".

Pequim e a Santa Sé, que não têm relações diplomáticas, divergem sobretudo na nomeação dos bispos, com cada lado a reclamar para si esse direito.

"Conhecendo agora melhor a China, entendo porque fazem tanta questão de ser eles a escolher", nota o sacerdota que prefere não se identificar. "O cristianismo representa um poder exterior, que está a coordenar coisas na China".

"Para eles, isso é algo impensável", realça.

Oficialmente, o número de cristãos na China continental rondará os 24 milhões, a maioria dos quais protestantes, o que não chega a dois por cento da população chinesa - 1.375 milhões de habitantes.

A Academia Chinesa de Ciências Sociais estima que haja cerca de 130 milhões de cristãos associados às chamadas "igrejas clandestinas".

É uma fé "ligada a uma faixa mais agrícola, mais pobre", descreve.

"A ideia da ressurreição, uma vida que seja melhor, quando a que levam é tão laboriosa, chama a atenção" dos chineses rurais, explica.

"Por que vivem numa sociedade que é um pouco desumana, [os chineses] têm um fascínio por Jesus Cristo como aquele que parou, se preocupou", diz.

À semelhança de dezenas de outros padres estrangeiros, que secretamente celebram Missas em "igrejas clandestinas" e casas particulares por toda a China, está no país com visto de estudante e procura "não levantar ondas".

"Enquanto em outros sítios encontram-se padres que falam de políticas e questões sociais, aqui esses assuntos não são nossos", conta.

Sempre que se desloca para fora de Pequim, fá-lo de comboio para uma cidade próxima do destino final, onde alguém o vai buscar de carro, como forma de despistar as autoridades.

"São coisas que temos de fazer para contornar. Foi o que nos disseram logo no início, porque o problema não seria para nós. Nós passamos uma ou duas noites numa prisão e somos expulsos do país", conta. "O problema é para os cristãos que ficam cá".

Para além de imporem "castigos ou prisão", as autoridades encerram igrejas ou convertem-nas em centros comerciais, mantendo as cruzes e os vitrais, "só mesmo para humilhar".

Informações vinculadas pela imprensa dão conta que a China e o Vaticano estão a negociar um acordo em que o papa ordenaria os bispos a partir de uma lista de candidatos aprovados pelas autoridades chinesas.

Seria a maior aproximação desde que Pequim e a Santa Sé romperam os laços diplomáticos, em 1951, depois de Pio XII excomungar os bispos designados por Pequim.

O padre confirma que tem havido "diálogo", mas admite que "quem está no terreno não vê uma solução para já".

"Mas vamos trabalhando e conseguimos contactar as pessoas e sobretudo levar aquilo que lhes interessa, que é o evangelho, e não quem é o bispo", conclui.

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