Moçambique: os dias do Idai

As raízes das árvores rompem o asfalto e saltam para as ruas da Beira. Quem viveu o ciclone Idai na cidade, fala da loucura do som da ventania, dos ventos a mudarem de direção, de chapas a voarem dos telhados. “Pai, vamos morrer? “, perguntava um miúdo na noite da ventania. O pai iludia-o, que não, que aquilo era passageiro. Mas, entretanto, voava o telhado da casa onde viviam. O rosto da cidade ficou desfigurado. A Beira já carecia de manutenção há décadas, agora ficou prostrada.

Chegamos à Beira, à noite. O aeroporto está irreconhecível. Normalmente é um local relativamente pacato. Agora está cheio de gente. Não há passageiros, antes elementos de ONG, da ONU, do Programa Alimentar Mundial, a tentarem coordenar ajuda para fazer chegar a quem dela precisa.

É um vai e vem incessante, uma babel de gente, de línguas diferentes, de rostos empenhados. E são tantos os que precisam. A ONU coloca a fasquia dos afetados pelo ciclone Idai e pelas inundações em 1 milhão e 800 mil pessoas.

Não há energia elétrica nem agua potável quando chegamos à cidade. Os hotéis foram atingidos, o alojamento será difícil. Acabamos por receber acolhimento em casa de um amigo, de uns amigos. A solidariedade está em marcha. A casa também está sem energia ou água potável. Volta-se ao tempo da luz das velas. Mas temos um teto e quartos confortáveis face ao que aconteceu. Johnatan, que ficou a tomar conta da casa, esmera-se no acolhimento, inventa um café e uns biscoitos para nos receber.

Ao chegarmos damos de caras com o que será um quebra-cabeças ao longo de toda a estadia: as comunicações. As redes telefónicas estão em caos, wifi é uma miragem. Vai revelar-se um desafio diário.

A manhã seguinte vai mostrar-nos uma cidade passada a ciclone. 

Reuters

Circula-se em ziguezague perante as árvores caídas. O ponto nevrálgico para fazer face à catástrofe é o aeroporto. É aí que há a chegada constante de aviões de carga com ajuda humanitária. É aí que se concentram as organizações internacionais e as autoridades moçambicanas que diariamente fazem o ponto de situação.

Queremos partir para o terreno, ver as consequências fora dali. No porto da Beira estão atracados dois navios de guerra enviados pela Índia e um navio da guarda-costeira. Estão disponíveis e recetivos ao transporte de jornalistas.

Juntamo-nos a uma equipa da TV da Dinamarca e outra do The Washington Post. Os indianos colocam no Índico cinco botes e um pequeno navio para transporte de pessoas. Avançamos pelo mar e parece que o mar nunca mais acaba, mesmo quando já estamos no leito do rio Buzi. É um dos rios que transbordou, cujas águas inundam vastas extensões.

 


No que era terra firme, no centro de Moçambique, formaram-se pequenos mares com mais de 100 km de comprimento e 25km de largura.

O destino é Buzi, retirar gente de Buzi depois de o rio ter entrado pelo cais, rua acima, até trepar as casas e as palmeiras. Muita gente refugiou-se em cima das árvores ou nos terraços mais altos.



A pequena Simone, que encontramos aos 13 dias de vida já na Beira, nasceu na manhã do dia da ventania, 14 de Março. No dia seguinte o hospital de Buzi cedia ao temporal e Simone seguiu às pressas, para casa, nos braços da mãe, Beatriz.

Chovia forte, a casa não aguentou. Saíram de casa para procurar abrigo na escola de Buzi. Dali ainda foram para o terraço da pensão da Dona Ivone.

Uma equipa de salvamentos acaba por resgatá-las e seguiram num bote rio acima até à Beira. A mãe Beatriz conta que Simone chorava no meio da chuva que “nem pensava que a conseguia recuperar”. Simone resistiu a tudo.



Encontramos o cais de Buzi cheio de gente. Uma gente resiliente que apesar de ainda ter os pés na água não quer sair daqui. É verdade que as equipas de resgate já levaram as mulheres e as crianças mais necessitadas. Mas os que se projetam agora para o cais querem sobretudo que chegue ajuda a Buzi, que lhes tragam alimentos e água potável e abrigos.

A razão é simples e é explicada no cais: aqui sabem como sobreviver. Na urbanidade da cidade admitem perder-se e acabarem a vaguear como pedintes pela rua. Clarividência que impressiona dadas as dificuldades que saltam à vista.

As equipas de resgate da marinha da Índia acabam por convencer umas 30 pessoas a sairem dali. Não mais.



Buzi foi o início do nosso trabalho, com o repórter de imagem Rui Castro, e também o local onde realizámos a nossa última reportagem nesta estadia.



Queríamos perceber as diferenças, o que tinha evoluído em 11 dias em Buzi. Na segunda vez fomos pelo ar, num helicóptero do Programa Alimentar Mundial. Momentos que levantam sempre aquela esperança sobretudo nas crianças: o que virá hoje?



Antes disso já tínhamos percebido como os terrenos estavam frágeis, como vai demorar até que a terra volte a estar firme e a permitir a chegada dos camiões da ajuda humanitária até aos locais mais isolados.



Na segunda viagem a Buzi aterramos num campo de futebol. A avenida principal da cidade que vai dar ao cais fluvial já está seca, já não está a abarrotar de gente, mas ainda há pessoas a viverem ali, a cozinharem no meio da via.

As histórias de quem tudo perdeu são demasiado frequentes. “Não temos casa, as culturas perderam-se na água, não temos nada”, conta Daniela Filipe sentada no alpendre da pensão da Dona Ivone onde ainda está a viver com toda a família. Os sinais de uma catástrofe de grandes dimensões notam-se no que os sobreviventes contam ou silenciam.

Um homem está sentado imóvel junto ao que resta do hospital de Buzi. O homem parece o sobrevivente de um terramoto ou de um bombardeamento mas não é o caso. O homem atravessou o ciclone Idai, as águas subiram-lhe até ao pescoço, depois desceram e deixaram-lhe a lama colada ao corpo em forma de pó.

Ao homem poderá faltar casa, família, comida, água. As coisas que o homem viu ficam lá dentro dele porque o homem não diz palavra como se lhe tivesse parado o pensamento.



Em Buzi também há pequenos milagres. Equipas de elementos da GNR instalaram uma máquina complexa que faz lembrar outros filmes. Os habitantes locais inicialmente estranharam a coisa, olhavam com relutância, não se aproximavam.

Um pequeno gerador dá vida a uma “coisa” que extrai água onde pousou todo o tipo de sujidade e transforma-a em água potável, vívida. Uma máquina purificadora, cheia de filtros, já foi adoptada pela gente de Buzi, que acorre ao quintal onde está instalada, com baldes e garrafas para encher do precioso líquido.

A água levou tudo mas a água é fonte de vida. Faz um calor abrasador, quase que é difícil abrir os olhos, mas já se notam pequenos sinais de normalidade a pontuarem a vida de Buzi, como o homem que lança música para a rua.

 


A questão das águas impróprias para consumo, que foram revolvidas pelas inundações, é um assunto muito sério, porque abrem alas para as epidemias que se instalam. Os moçambicanos são inspirados nos nomes que escolhem e ainda estávamos em Maputo, antes de viajar para a Beira quando partimos à procura de Certezas na cidade. “Vamos comprar certezas ali ao supermercado“, exclama Orlando ao volante do seu carro nas ruas de Maputo.

Paramos no primeiro estabelecimento e as certezas estão esgotadas. Faz 33 graus, um calor húmido alapado à pele. Avançamos para a mercearia da esquina a uns 100 metros com o mesmo propósito, vidrados nas certezas. Logo à entrada, o funcionário desilude-nos: “Aqui também não há, porque tem havido muita procura!”

É preciso ziguezaguear pelo trânsito da capital moçambicana para finalmente entrarmos noutro supermercado e encontrar os frasquinhos azuis de tampa amarela e um rótulo sem margem para equívocos: Certezas.

O ciclone Idai no centro de Moçambique lança muitos alarmes. Um deles, a cólera. Daí que o líquido purificador de água da marca Certeza esgote a mais de mil quilómetros de distância para que as embalagens sejam enviadas para a Beira. O Diretor Nacional de Saúde insiste no apelo : “Há que usar Certezas! “

 


E as epidemias não se fizeram esperar. Andamos no bairro da Munhava, na Beira, o foco da cólera. No centro de saúde os sinais são claros: o pessoal médico apresenta-se de luvas, máscaras, galochas. Protecção máxima. Ainda não está dado o alerta mas percebe-se o que aí vem. No dia seguinte é assumida a situação.

Mas há um certo pudor em falar dela, da epidemia de cólera. Como se, ao evitar-se a palavra, a doença se afastasse. No Centro de controlo de cólera em Macurungu, Beira, as tendas dão abrigo a contaminados que vieram de Munhava. Dentro das tendas as forças abandonam o corpo à medida que cresce a desidratação. Há um cheiro intenso a cloro. As terras foram reforçadas depois de revolvidas pelas águas e pelo ciclone Idai. O pessoal médico está empenhado nesta luta contra o tempo e contra o contágio.

  


Uma das vias centrais em Moçambique é a estrada N6 que liga a cidade portuária da Beira a outros países da região: Zâmbia, Zimbabwe, Malawi. As inundações e o ciclone Idai interromperam a vida, quebraram o asfalto, deixaram a circulação suspensa durante mais de uma semana.

Os chineses que tem uma forte presença em Moçambique, estão a reparar a parte mais sensível da estrada. Avançamos para os homens de Pequim que controlam as obras, que nos contam do conhecimento que têm sobre a importância da vitalidade da via. Acabamos por conseguir passar e chegar mais além, a Nhamatanda. Aí percebe-se melhor as ondas de choque para toda a economia da região, as centenas de camiões que foram ficando parados ao longo da estrada. Mas a abertura é iminente.

Ao longo da estrada estende-se devastação. Os que perderam as casas sobrevivem sob plásticos pretos, em abrigos improvisados. O número de mortos ou desaparecidos é uma incógnita porque muitos foram levados pelas águas revoltas.

Encontramos João Brás que não larga a sua pasta vermelha. É secretário de um dos 32 bairros do município de Lamego, a 75 km da Beira, no centro de Moçambique. Só fala do que sabe, do bairro dele. Viviam 2360 pessoas em 421 casas. Restam 19 casas. Morreram sete pessoas, nove desapareceram. Os sobreviventes perderam tudo, ninguém tem documentos. “Também falta comida, mantas, tendas. E pratos ninguém tem. Foi tudo com a água “, remata João Brás .

 


Não muito longe há um homem que revolve a terra escura ainda empapada. Procura o que resta da casa dele, num local onde ninguém diria que já houve construção. Extrai do entulho meia dúzia de roupas molhadas e sujas, e procura uma mala de viagem que já foi vermelha. Do forro da mala, retira uma pequena carteira com documentos. Pega na sua bicicleta e vai embora, na busca de inspiração para voltar a erguer a casa e toda uma vida. Nesse 7.º bairro de Tica, a 70 quilómetros da Beira vive Isabel a amiga Tina.

As casas do bairro foram levadas pelo vento. Os animais engolidos pelas cheias. A doce Isabel existe de forma delicada, sorriso tímido. Aos 14 anos procura uma oportunidade na vida, quer estudar, tornar-se enfermeira. Isabel falava de tudo isto com economia de palavras e recato. Até que lhe perguntei pelos medos e o ciclone Idai solta-lhe inadvertidamente as lágrimas. As águas violentas levaram-lhe o irmão, Alberto, de dois anos. Isabel puxa da capulana púrpura que traz à cintura e esconde os olhos.



Estes são apenas fragmentos das coisas vistas e vividas nos dias que se seguiram ao ciclone Idai. O impacto não é inferior ao furacão Katrina que atingiu Nova Orleães, nos EUA em 2005.

Quando nos deparamos com a vastidão desta tragédia tudo fica mais relativo. Por todo o lado há muitos miúdos, muito pequenos. Correm descalços pelas terras, por entre casas caídas ou poças de água parada. São sobreviventes a mais um ciclone, a mais umas inundações. São resistentes sem saberem o que haverá amanhã para comer, se haverá amanhã. Alguns deles escolhem a raiz de uma árvore arrancada pelo Idai para apreciarem o movimento.

 


Há promessas de que a ajuda humanitária vai prolongar-se no tempo, vai ajudar os moçambicanos a erguerem-se deste trágico momento. Eles apenas querem recomeçar do zero. Outra vez.