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Mónica Ferro: "As mulheres ficaram no fim da lista de prioridades"
A interrupção da distribuição de métodos de planeamento familiar e o fecho de serviços de saúde resultaram em gravidezes indesejadas e doenças sexualmente transmissíveis. Fundo das Nações Unidas para a População garante que a pandemia de Covid-19 está a atrasar a luta contra o casamento infantil, a mutilação genital feminina e a agravar a desigualdade de género.
"As práticas tradicionais baseiam-se na perceção de que o bem-estar dos homens é mais importante que o bem-estar das mulheres", diz Mónica Ferro. Em entrevista à RTP, a diretora em Genebra do Fundo das Nações Unidas para a População admite que o financiamento é escasso para as necessidades e que a pandemia veio atrasar ainda mais os programas.
O que é que ficou por fazer no terreno com esta pandemia?
A rutura dos canais globais de distribuição teve um impacto brutal na nossa distribuição de produtos de saúde menstrual e de planeamento familiar, como os contracetivos. Estimamos que, desde o início da pandemia, a acrescentar aos 230 milhões de mulheres que já não tinham acesso a métodos de planeamento familiar modernos, se vão acrescentar 41 milhões de mulheres. Isto resulta em mais 7 milhões de gravidezes indesejadas com todas as consequências que isso tem: o aumento de abortos inseguros e aumento de infeções sexualmente transmissíveis.
A Covid-19 atrasou o combate a práticas nefastas contra as mulheres?
Sim, nós estimamos que haja na próxima decada mais 2 milhões de casos de mutilação genital feminina que podiam ser evitados e mais 13 milhões de casamentos infantis que também podia ser evitados, se os programas estivessem a correr como nós esperávamos que eles corressem. Em muitos hospitais e centros de saúde os recursos foram todos redistribuídos e a prioridade passou a ser a resposta à Covid-19. Muitas mulheres deixaram de ir a um centro de saúde para ter uma consulta de rotina, de acompanhamento de uma gravidez ou até para ter um parte assistido porque tinham medo de ser infetadas. Muitos profissionais de saúde, como as parteiras, foram reafetadas ao combate à Covid-19, deixando aqui uma falha na prestação de serviços específicos às mulheres. Um dos nossos grandes trabalhos foi alertar e criar consciência para o facto de que os serviços de saúde sexual e reprodutiva e ligados à gravidez e ao parto têm de estar na lista de prioridades, e esse foi um trabalho que fizemos com os governos e com as comunidades, até para esclarecer as mulheres de que elas deviam continuar a procurar este tipo de serviços, porque os profissionais de saúde estavam preparados para prestar os serviços em qualidade. Uma das nossas primeiras respostas foi fornecer equipamentos de proteção individual aos profissionais de saúde para que eles pudessem continuar a atender as mulheres grávidas e em trabalho de parto de uma forma segura.
Há sempre a questão do financiamento por parte dos países que afeta o trabalho do UNFPA. Isso tambem se verificou nesta fase?
Houve uma onda de solidariedade de muitos países, liderada pelos países europeus e pelo Reino Unido. Muitos não só honraram os compromissos financeiros como foram solidários, o que nos permitiu ir continuando a fazer o nosso trabalho. Mas quando a pandemia começou nós já sabíamos que, com os recursos escassos que os países têm sempre, esta seria uma situação ainda mais complicada.
Essas falhas vêm sobretudo dos EUA? Que outros países não contribuem com financiamento suficiente?
Não há nenhum país que tenha sido mais faltoso do que o que era. Os grandes doadores, os mais generosos, responderam à chamada. E isso é que é de louvar. O que houve foi um aumento das necessidades. Nunca há dinheiro suficiente e nós agora pedíamos ainda mais. As crises afetam mais as mulheres e raparigas do que os homens. Nós sabemos pelas estatísticas que morreram mais homens do que mulheres de causas diretamente ligadas à Covid-19, mas todos os efeitos laterais ou colaterais são mais duros nas mulheres, não só porque elas constitutem 70% dos profissioanis de saúde e das áreas sociais, e por isso estão mais expostas ao risco, mas também porque são sempre discriminadas no acesso a serviços de saúde. A questão da violência doméstica é essencial: sabíamos que iria aumentar durante a quarentena porque os fatores de tensão iriam aumentar, e iriam diminuir as hipóteses de reportar os casos. Estimamos que haja mais 31 milhões de casos de violência com base no género, incluindo casos de mutilação genital feminina e casamento infantil.
O relatório do UNFPA diz que são precisos 3,4 mil milhões de dólares (3,024 mil milhões de euros) por ano até 2030 para acabar com o casamento infantil e com a mutilação genital feminina. Isto salvaria 84 milhões de raparigas destas práticas. Como é que se consegue convencer os governantes a fazer um investimento deste género, sobretudo nesta fase ainda mais difícil?
A estimativa é que se precise de 3,4 mil milhões de dólares ao longo da próxima década, mas 3,4 mil milhões de dólares é o dinheiro que os 20 maiores bancos vão pagar em multas por incumprimento de regras durante essa década, portanto não é impossível de atingir. É um numero que está ao alcance dos governos. É um investimento, não é um custo. Um investimento nesta área vai poupar muito dinheiro aos governos e às comunidades em cuidados de saúde que vão ter de ser fornecidos a estas mulheres e raparigas por consequências da mutilação genital feminina e do casamento infantil porque vão ter gravidezes muito cedo e vão ter partos com consequências muito negativas para a saúde delas. Os custos de produtividade que vão ser sentidos em resultado destas violações de direitos humanos são enormes, e isso traz custos económicas para o país. E depois há o custo mais elevado de todos que é o da dignidade destas raparigas e mulheres que vai ser roubada. Os números sendo assustadores não nos deviam impedir de agir. Pelo contrário. Os números são tão graves que só podem levar a uma resposta igualmente forte.
O nosso relatorio anual focou-se em 19 práticas nefastas, tradicionais, que são tratadas pela primeira vez como violações de direitos humanos: o casamento infantil, a mutilação genital feminina, preferência por um filho do sexo masculino, o achatamento dos seios, práticas de parto discriminatórias, sociedades em que as mulheres são alimentadas de mais ou alimentadas de menos para cumprirem determinados padrões de beleza. Violam o direito à saude, à educação, a uma existência livre de violência. São práticas em que as comunidades estão muitas vezes persuadidas de que é necessário passar por elas para se poder pertencer a um grupo social.
Invocam a cultura.
Sim, e isso é preocupante, mas também é uma boa notícia porque as práticas podem ser mudadas. As ideias sociais transformam-se ao longo do tempo. As taxas de mutilação genital feminina e do casamento infantil estão em redução progressiva mas, ao mesmo tempo, são práticas que acontecem nos países onde o crescimento populacional é maior. Há uma percentagem menor de raparigas e mulheres em risco mas, como há um aumento populacional grande nesse país, o número absoluto é maior. Ou seja, há mais mulheres hoje a passar pelas práticas do que havia há 25 anos.
Sente que é determinante adotar uma lógica de persuasão?
O que nós notamos que resultou nestas últimas décadas foi o trabalho feito com organizações lideradas por mulheres e com organizações da diáspora. No caso da mutilação genital feminina, muitas vezes esta prática mantém-se na diáspora porque muitas comunidades acham que é uma maneira de manter a identidade nacional. Se nós mostrarmos que a identidade nacional pode ser mantida sem se violar os direitos humanos das meninas e das raparigas isso ajuda. Resulta pormos as comunidades a dialogar umas com as outras, pôr os pais a dialogar com os jovens, empoderando organizações locais, financiado projetos. Muitas vezes os pais e as mães casam a filha de 11 anos anos com um homem mais velho não porque não têm amor à criança mas porque acham que é a melhor maneira de a proteger durante um período de crise. O que nós temos de mostrar é que esta proteção vai significar que ela vai ter de sair da escola, que ela não vai aprender os conhecimentos necessários para poder ter um emprego produtivo, vai engravidar cedo demais. Basta ver que as maiores causas de mortalidade nas raparigas entre os 14 e os 19 anos são causas ligadas à gravidez e ao parto. Isto é inadmissível.
Essa lógica de convencer também tem de ser adotada quando se está numa mesa com governantes que são na maioria homens, certo?
Esse é um dos grandes desafios. E não é surpresa para ninguém dizer que estas 19 práticas tradicionais se baseiam na percepção de que o bem-estar dos homens é mais importante que o bem-estar das mulheres e que as mulheres precisam da proteção jurídica, económica e da proteção física de um homem. Isto está profundamente enraizado na discriminação com base no género e na subvalorização da mulher, do seu bem-estar e da sua autonomia em relação a um homem. As respostas à Covid-19 têm de ter em atenção o impacto diferenciado em homens e mulheres, mas sobretudo têm de ter mulheres à mesa a decidir.
Esta pandemia veio exacerbar as várias discriminações que já existiam. Vamos pensar nas mulheres idosas, nas mulheres afro descendentes, nas mulheres portadoras de deficiência, nas mulheres indígenas. Eu nunca me hei-de esquecer de uma conferência que fizemos há uns meses em que eu, quando estava fazer pesquisa para a minha intervenção, me deparei com um depoimento de uma senhora de 70 anos que dizia que sempre que ia ao médico e lhe dizia que achava que estava doente o médico lhe dizia: a senhora não está doente, a senhora está é velha. Não se diz isto a um homem. Mas uma mulher que tenha passado toda a sua vida num contexto de discriminação e que esteja habituada a ser desvalorizada aceita isto. E é por isso que nós temos em muitos países taxas de cancro da mama e do colo do útero muitíssimo elevadas em mulheres mais velhas porque elas deixam de ser uma prioridade para os governos.