Morreu líder espiritual dos "Rabelados"
"Nhu" Agostinho, há décadas líder espiritual dos "Rabelados", uma comunidade fechada assente numa ortodoxia religiosa e estabelecida na região montanhosa da ilha cabo-verdiana de Santiago, morreu domingo, aos 64 anos, foi hoje anunciado.
A comunidade dos "Rabelados", termo crioulo que na tradução para português significa rebeldes, é composta por cerca de 2 000 pessoas e, segundo os investigadores que nos últimos anos se debruçaram sobre o fenómeno, "Nhu" Agostinho foi o alicerce da tradição do grupo.
Esta comunidade fechada surgiu em Cabo Verde em 1940, por oposição à modernização da Igreja católica imposta a partir de Lisboa, então capital da administração colonial portuguesa.
Actualmente, a maior parte dos "Rabelados" vive n zona de Espinho Branco, Calheta de São Miguel, na ilha de Santiago.
Uma das mais importantes iniciativas que permitiu abrir uma janela do mundo fechado dos "Rabelados" foi a gravação de um CD com as suas ladainhas (cânticos religiosos), organizada pela artista plástica cabo-verdiana Misá, que hoje anunciou a a morte do líder da comunidade.
O trabalho discográfico, que representa uma profunda alteração à postura desta comunidade, profundamente idiossincrática, surgiu com o título "Cânticos Sagrados de Cabo Verde - A Litania dos Rabelados".
Gravado localmente por Eric Léveque, os "Cânticos" dos "Rabelados", marcaram, como explicou há cerca de um ano à Agência Lusa Misá Kouassi, coordenadora do projecto, uma "etapa clara de transição da postura fechada da comunidade para uma abertura igualmente óbvia", sem mexer com o seu olhar especioso sobre o sagrado.
A comunidade chefiada por "Nhu" (senhor em português) Agostinho foi objecto de vários estudos antropológicos realizados por cientistas de vários países devido à sua condição quase única no mundo, apesar das rigorosas condições impostas e das dificuldades levantadas à realização de estudos.
Misá Kouassi disse à Lusa que, ao contrário da ideia generalizada, "não foram os `Rabelados` que alteraram hábitos, estes apenas os mantiveram", enquanto em seu redor os novos preceitos impostos pela Igreja oficial ganhavam terreno.
"Durante mais de 300 anos, a prática religiosa em Cabo Verde - colónia portuguesa até 1975 - era aquela que ainda hoje é seguida por esta comunidade", disse Misá, adiantando que os próprios "Rabelados" renegam a designação porque defendem que quem se rebelou contra a prática religiosa de então "foi o mundo à sua volta".
Perante esta postura ortodoxa, a administração colonial portuguesa seguindo uma "nova evangelização", por vezes pela força, foi dispersando os membros desta comunidade pelas outras ilhas do arquipélago, que foram mesmo "perseguidos de forma violenta", havendo inclusive um esforço por criar "uma visão errada sobre eles de forma artificial", nomeadamente que eram pessoas violentas ou anti- sociais.
Ora, todo este olhar sobre os "Rabelados" está em profunda alteração nos últimos anos, tendo, para isso, sido fundamental o trabalho de Misá Kouassi junto da comunidade.
"Hoje, estas pessoas já aceitam a luz eléctrica, o telefone, a escola para os seus filhos e até a televisão, mas com um controlo rigoroso sobre os programas que podem ou não ser vistos", detalhou a antropologa, pintora e poetisa que convenceu os chefes da comunidade a aceitarem gravar as ladainhas em CD.
Devido à "mistificação que envolveu a comunidade dos `rabelados` durante mais de meio século", Misá defende que a sua postura fechada é - era - um reflexo da intolerância para com os seus hábitos religiosos "e a defesa que destes faziam e fazem".
No texto que acompanha o CD "Cânticos Sagrados de Cabo Verde - Litania dos Rabelados", o chefe "Nhu" Agostinho, da comunidade de Espinho Branco, esclarece que "o resultado da doçura com que praticam a vida quotidiana também será o resultado do seu caminho celeste".
"Cabe-nos viver na caridade e aceitar o sofrimento para nos libertarmos das tendências más", destaca.
As ladainhas dos "Rabelados" contidas no CD são, explica ainda Misá, citando o chefe Agostinho, uma súplica feita a um santo que foi santificado no céu perante Deus e que, por isso, é mais fácil ser atendido por Deus.