Morreu Svetlana Staline

Tinha 85 anos e adoptara, no seu passaporte norte-americano, o nome Lana Peters. Mas, previsivelmente, era conhecida pelo nome russo. Svetlana Staline era filha do ditador soviético e em vida nunca rompeu com ele. Catorze anos após a morte de Staline, fugiu para os Estados Unidos e renegou tudo: a memória do pai e o país natal.

RTP /
Staline com a filha, Svetlana DR

Lana Peters morreu de cancro, já há uma semana, mas a notícia só agora foi tornada pública. Vivia ultimamente no Estado norte-americano de Wisconsin, mas desde a fuga para o Ocidente, em 1967, mudava com frequência de endereço e até de país. Vivera em Inglaterra, onde deixava os vizinhos acreditarem que era irlandesa. Vivera também na Suíça. Nos Estados Unidos, fizera o seu quarto casamento e dissimulava a identidade com o apelido do marido.

A grande purga que passou ao lado de Svetlana

Svetlana ainda não tinha dez anos nem algum sentido crítico ao tempo dos "Processos de Moscovo", que dizimaram a Velha Guarda bolchevique, condenando à morte a maioria dos companheiros de Lenine, sob acusações fantasiosas. Os processos foram desencadeados a pretexto do assassínio de Kirov, o dirigente comunista que no Congresso do partido tivera a infelicidade de ser mais votado do que Stalin.

O seu assassínio, em 1934, nunca foi inteiramente esclarecido, mas serviu de várias formas à consolidação do poder de Stalin. Por um lado, desembaraçou o ditador desse rival involuntário, e demasiado popular. Por outro lado, foi o pretexto ideal para uma vaga de prisões dos mais notáveis dirigentes bolcheviques.

As prisões dentro do partido foram feitas à esquerda e à direita. Os inseparáveis Zinoviev e Kamenev, companheiros da primeira hora de Lenine, e também dos seus vários exílios, tinham em 1923 ajudado Stalin a derrotar o mais carismático dirigente soviético, Leon Trotsky, e depois foram afastados. Stalin aliou-se então com a ala direita, encabeçada por Bukharin, para esvaziar a influência de Zinoviev e Kamenev.

Estes aproximaram-se de Trotsky, mas a aliança entre os três já vinha demasiado tarde para reunir força que fizesse face à dupla Stalin-Bukharin. Capitularam então perante Stalin, enquanto Trotsky era banido para o exílio. Stalin deixava, assim, de necessitar de Bukharin. Em breve iria também afastá-lo.

Mas todas essas figuras mantinham um prestígio histórico muito superior ao de Stalin. O assassínio de Kirov foi o pretexto para liquidar a esquerda (Zinoviev-Kamenev) e a direita (Bukharin). A maioria capitulou às pressões morais e à tortura exercida pela NKVD (a polícia estalinista). Os que não capitulavam eram mortos sem julgamento. Alguns, como Radek e Rakowski, foram deportados para a Sibéria, e aí foram mortos.

As acusações contra os velhos dirigentes bolcheviques incluíam a traição e a espionagem a favor da Alemanha nazi. Mesmo a cúpula do Exército Vermelho viu centenas de generais fuzilados sob tais acusações, a começar pelo lendário Tukhatchewski. Da purga militar disse o exilado Trosky que todas as proclamações estalinistas, segundo as quais o Estado soviético se reforçava detectando espiões e quintas-colunas pró-nazis, não enganariam a Alemanha nazi, conhecedora, melhor do que ninguém, de quem eram os seus verdadeiros agentes. A purga, afirmava, encorajava o nazismo a preparar uma guerra contra a URSS.

Andrej Wischinsky era o procurador público que lançava as acusações de espionagem e exigia: "Fuzilem-me estes cães raivosos!". Wischinsky, um antigo magistrado, emitira em julho de 1917 o mandado de captura contra Lenine, obrigando-o então a fugir para a Finlândia, onde se manteve até à tomada do poder, em novembro de 1917.

Nos processos de Moscovo dos anos 30 Wischinsky voltava a ter como alvos da sua perseguição os mesmos bolcheviques que visara em 1917. Sob o regime estalinista, o magistrado anti-bolchevique havia de subir ainda mais, até chefiar a diplomacia soviética.

Casamentos como assunto de Estado

Enquanto estes dramas se desenrolavam, Svetlana atingia a adolescência e a idade adulta, e fazia um primeiro casamento, com um colega da universidade, desaprovado mas não impedido por Stalin. Um segundo casamento já foi preparado pelo próprio Stalin e uniu-a ao filho de Jdanov, o teórico do "realismo socialista", cânone estético que serviu para colocar na lista negra todos os artistas insensíveis às directivas do partido.

Depois da morte de Stalin, Svetlana trabalhava como tradutora e ligou-se a um comunista indiano que fora à URSS realizar tratamentos médicos. Como o partido vetou o casamento de ambos, Svetlana manteve uma ligação informal até à morte do seu amigo indiano. Foi então autorizada a levar as cinzas deste à sua família, na Índia e, durante a estadia nesse país, foi contactada pelo embaixador norte-americano que a convenceu a desertar.

Nos Estados Unidos, pela primeira vez, emitiu declarações devastadoras contra o pai, o seminarista georgiano Josip Wisssarionowitsch Djugaschvili, que adoptara na clandestinidade bolchevique o nome de Stalin. Ganhou muito dinheiro com a publicação das suas memórias, mas viveu a fugir constantemente do seu passado e a esconder a sua identidade.

Os irmãos de Svetlana

Svetlana era a única filha de Stalin, tendo também um meio-irmão, de anterior casamento de Stalin, e um irmão. O meio-irmão, Yakov Stalin, era oficial de artilharia quando a Alemanha nazi surpreendeu o Exército Vermelho com uma ofensiva-relâmpago, capturando em poucos meses quase cinco milhões de soldados.

Embora na sua maioria não tivessem os meios para se defenderem, esses prisioneiros foram, em Moscovo, considerados "traidores" por terem caído vivos nas mãos da Wehrmacht. Na sua grande maioria (três milhões em cinco), morreram rapidamente, de fome, frio e maus tratos infligidos pelos nazis. Mas até os raros sobreviventes, ou aqueles que conseguiram fugir, eram mal recebidos do lado soviético, por serem testemunhas incómodas da incúria dos dirigentes, surpreendidos pela invasão nazi.

No caso de Yakov, este gozou de algum tratamento especial que lhe permitia sobreviver, porque os nazis parecem ter alimentado a expectativa de o utilizarem como moeda de troca ou como instrumento de pressão moral sobre Stalin. Mas Yakov não era um filho querido de Stalin e provocara mesmo um acesso de ira do pai, quando este soube que estava comprometido com uma noiva judia. O repúdio do pai causara uma tentativa falhada de suicídio de Yakov, que disparara sobre si próprio. Stalin comentara apenas, friamente: "Ele nem sabe disparar bem".

Stalin nunca deu, na verdade, qualquer sinal de se deixar pressionar pela situação de Yakov no campo de concentração nazi. Os nazis propuseram depois trocar Yakov pelo marechal von Paulus, capturado pelo Exército Vermelho na batalha de Stalingrado. O ditador respondeu: "Não troco um tenente por um marechal". Yakov acabou por morrer no cativeiro - segundo algumas versões suicidando-se, segundo outras durante uma tentativa de fuga, segundo outras ainda assassinado.

O irmão de Svetlana, Vasily, tornou-se aviador e combateu durante a Segunda Guerra Mundial, fê-la como coronel e termnou-a como general. Segundo reza a história, as suas fracas classificações na academia militar levaram o chefe da polícia, Laurenti Beria, a intervir a seu favor e a conseguir-lhe vários privilégios. Mas Stalin terá intervindo depois para que esses privilégios lhe fossem novamente retirados.

Depois da morte de Stalin, Vasily foi preso sob a acusação de revelar segredos de Estado e confessou-se culpado. Com a subida de Kruschev ao poder, pediu clemência, mas esta foi-lhe recusada e ficou oito anos na prisão, sendo libertado em 1960. Morreu dois anos depois e foi reabilitado 37 anos mais tarde, em 1999.
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