Morte da juíza Ginsburg dá origem a contenda política pela substituição

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Andrew Kelly - Reuters

A icónica juíza do Supremo Tribunal dos EUA morreu na noite de sexta-feira, aos 87 anos, vítima de cancro no pâncreas. A morte de Ruth Ginsburg não só marca a perda de um dos grandes rostos da luta pelos direitos da mulher e da ala progressista da instituição, como vem desestabilizar a corrida presidencial, na medida em que deixou de estar apenas em jogo quem irá liderar a Casa Branca, mas também o equilíbrio ideológico do Supremo Tribunal.

Nomeada pelo presidente Bill Clinton em 1993, Ruth Bader Ginsburg era a mais antiga juíza do Supremo Tribunal dos EUA e a segunda mulher a ter alcançado aquele cargo.

Em comunicado, o tribunal indicou que a morte da juíza se deveu a “complicações causadas por um cancro do pâncreas”. Em julho, Ginsburg tinha anunciado que estava a fazer quimioterapia para lesões no fígado, a última das várias batalhas que travou contra o cancro desde 1999.

Ginsburg era uma das quatro figuras da ala progressista da instituição, sendo vista como uma líder inquestionável na defesa dos direitos das mulheres e das minorias, o que a levou a conquistar admiradores entre várias camadas da população norte-americana.

A sua morte levanta, por isso, receios que seja vista como uma oportunidade para o presidente norte-americano tentar expandir a maioria conservadora no tribunal, mesmo antes das eleições presidenciais de novembro.

Esta possibilidade era já uma grande inquietação para Ginsburg. “O meu desejo mais fervoroso é que não seja substituída até que um novo presidente seja empossado”, escreveu a juíza numa carta deixada à sua neta, Clara Spera, dias antes da sua morte.
Divergências quanto à nomeação do substituto
O anúncio da morte de Ruth Bader Ginsburg abriu, desta forma, uma intensa batalha política a menos de dois meses das presidenciais. A grande questão que se impõe agora, e que certamente irá dominar a fase final da campanha para as presidenciais, é a sua substituição.

A morte da juíza representa um duro golpe para os progressistas norte-americanos e poderá alterar o equilíbrio da instituição em benefício dos conservadores
. Por este motivo, dividem-se opiniões sobre a escolha do substituo: poderá ser ainda Trump a nomear, ou deverá ficar nas mãos do próximo presidente nomeado? A nomeação dos juízes do Supremo Tribunal está a cargo do presidente dos EUA e deve ser confirmada pelo Senado, atualmente de maioria republicana. Os magistrados têm um mandato vitalício, podendo apenas ser substituídos quando decidem aposentar-se ou perante um processo de impeachment no Congresso.

As leis do país não impedem que o presidente em exercício nomeie um juiz para o Supremo Tribunal em qualquer altura do seu mandato e a Casa Branca já veio anunciar que o presidente Donald Trump deverá nomear um substituto conservador para ocupar o lugar de Ginsburg o mais rápido possível. O líder da maioria republicana do Senado, Mitch McConnell, também afirmou, na noite de sexta-feira, que se um candidato fosse apresentado antes das eleições, haveria uma votação sobre a escolha de Trump.

No entanto, o candidato democrata à Casa Branca, Joe Biden, defende que deve ser o próximo presidente dos EUA, eleito a 3 de novembro, a escolher o substituto da juíza.

"Esta noite e nos próximos dias, vamos estar focados na morte da juíza e no seu legado imortal. Mas para que não haja qualquer dúvida, deixem-me ser claro: os eleitores devem escolher o Presidente e o Presidente deve escolher o juiz para que o Senado o considere", afirmou Joe Biden, numa declaração emitida em direto de sua casa no estado de Delaware.

Biden lembrou que em 2016, na sequência da morte do juiz conservador do Supremo Tribunal Antonin Scalia, McConnell ignorou o substituto escolhido pelo então presidente, Barack Obama, e não submeteu a sua nomeação a voto, com o argumento que não fazia sentido uma aprovação em ano eleitoral.

Na altura, salientou Biden, faltavam quase nove meses para as presidenciais, enquanto agora faltam apenas 46 dias. "Estamos a falar da Constituição e do Supremo Tribunal. Essa instituição não devia estar sujeita à política", destacou.

Obama, numa mensagem deixada na sua página de Facebook a lamentar a morte de Ginsburg, recorda esse mesmo momento: “Quatro anos e meio atrás, quando os republicanos se recusaram a realizar uma audiência ou uma votação em Merrick Garland, eles inventaram o princípio de que o Senado não deveria preencher uma vaga no Supremo Tribunal antes da tomada de posse de um novo presidente”.

O antecessor de Trump sublinhou que “um princípio básico da lei – e da justiça do dia-a-dia – é que apliquemos as regras com consistência e não com base no que é conveniente ou vantajoso no momento”. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos é composto por nove juízes que têm o poder de mudar as leis do país. Na prática, desempenham um papel crucial em temas como o aborto, os direitos dos imigrantes, a privacidade, a pena de morte e a posse de armas.

Desde que assumiu a presidência, Trump nomeou dois juízes e o atual tribunal tem uma maioria conservadora de 5-4 na maioria dos casos. É expectável que a ala democrata no Senado fará todos os possíveis para impedir a nomeação de um juiz conservador, mas a maioria republicana no Senado não deixará muitas hipóteses.

Com a provável nomeação de mais um juiz do Supremo por Donald Trump, a maioria conservadora passará a ter uma vantagem de 6-3
, o que terá certamente consequências nas decisões sobre temas de grande relevância, como o aborto e o casamento homossexual.
O legado de Ginsburg
Ao longo de uma ilustre carreira jurídica de seis décadas, Ginsburg recebeu um reconhecimento sem precedentes para um jurista dos EUA.

A jurista era idolatrada pela sua posição progressista em questões que geravam mais polémica no Supremo Tribunal, desde o direito ao aborto ao casamento homossexual.

Nascida em 1933 e filha de pais judeus, Ginsburg estudou na Harvard Law School, onde foi uma das nove mulheres numa turma de cerca de 500 homens.

Ginsburg não recebeu nenhuma oferta de emprego após terminar a licenciatura, mas chegou ao Supremo Tribunal, em 1993, com um grande currículo pelos direitos feministas. Em 1970, tornou-se uma das fundadoras do primeiro jornal de direito focado nos direitos das mulheres, o Women’s Rights Law Reporter.

Já em 1972, foi co-fundadora do Projeto dos Direitos das Mulheres na União das Liberdades Civis Americanas
. Nesse mesmo ano, Ginsburg tornou-se a primeira professora titular da Columbia Law School.

Em 1980, a jurista foi nomeada para o Tribunal da Relação do distrito de Columbia como parte dos esforços do então presidente, Jimmy Carter, pra diversificar os tribunais federais.
Reações à sua morte
A bandeira dos EUA foi colocada a meia-haste na Casa Branca e no Congresso norte-americano para honrar a magistrada Ruth Ginsburg.

Perto do Congresso, algumas centenas de pessoas concentraram-se e acenderam velas junto ao edifício do Supremo Tribunal dos Estados Unidos para prestar homenagem ao ícone da esquerda norte-americana.

Antigos presidentes, políticos veteranos e vários juristas deixaram uma mensagem a lamentar a morte Ginsburg, saudando o seu compromisso com o direto das mulheres.

O juiz-presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, John Roberts, afirmou que o país "perdeu uma jurista de dimensão histórica".

"Perdemos uma colega estimada. Hoje estamos de luto, mas confiantes de que as gerações futuras recordarão Ruth Bader Ginsburg como nós a conhecemos, uma incansável e decidida campeã da justiça", indicou.

O antigo presidente dos EUA Jimmy Carter pelidou-a de “mulher verdadeiramente notável”. “Uma mente jurídica poderosa e uma verdadeira defensora da igualdade de género, ela foi uma referência da justiça durante a sua longa e notável carreira”, escreveu o ex-presidente numa declaração.

Ao elogiar a sua “procura por justiça e igualdade”, também George W. Bush, o 43.º presidente dos EUA, disse que Ginsburg “inspirou mais de uma geração de mulheres”.

Barack Obama também lamentou a morte da juíza. O antecessor de Trump recordou o percurso de Ruth Ginsburg, descrevendo-a como uma “guerreira pela igualdade de género. “A juíza Ginsburg ajudou-nos a perceber que a discriminação com base no sexo não é sobre um ideal abstrato de igualdade, que não prejudica apenas as mulheres e que tem consequenciais reais para todos nós. É sobre quem somos e quem queremos ser”, escreveu Obama.

“Michelle e eu temos uma grande admiração por ela. Estamos profundamente gratos pelo legado que deixou neste país e oferecemos a nossa gratidão e condolências aos seus filhos e netos”, acrescentou o ex-presidente.

Na rede social Twitter, Hillary Clinton admitiu que se inspirou na juíza de 87 anos quando concorreu contra Donald Trump nas presidenciais de 2016. “Ginsburg abriu o caminho para muitas mulheres, incluindo eu própria. Nunca haverá outra como ela. Obrigada”, escreveu Clinton.

Também Donald Trump se mostrou “triste” com a notícia. Antes de ser conhecida a morte de Ginsburg, o presidente dos EUA encontrava-se num comício onde anunciava que tinha publicado uma lista de 40 possíveis candidatos ao Supremo Tribunal, que Trump descreveu como “conservadores” que acreditam na Constituição.

O presidente apenas foi informado da morte da juíza após o comício. “Ela acabou de morrer? Uau, eu não sabia disso”, disse Trump aos jornalistas. “Ela teve uma vida fantástica. Que mais se pode dizer? Ela era uma mulher incrível. Quer concordássemos ou não, era uma mulher incrível que levou uma vida fantástica”, acrescentou.

O candidato democrata à presidência dos EUA destacou o percurso "inabalável" de Ginsburg, sublinhando que foi uma juíza “feroz”.

“Ela praticava os mais altos ideais americanos como juíza do Supremo Tribunal. Ruth Ginsburg defendeu-nos a todos”, disse Joe Biden. “Foi uma voz consistentemente fiável em defesa da liberdade e de oportunidades para todos”, sublinhou.
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