Movimento #MeToo desperta no Irão e desafia sociedade conservadora

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
No Irão, uma mulher vítima de violação é, geralmente, considerada culpada Reuters

O movimento #MeToo está numa fase de crescimento no Irão, à medida que cada vez mais mulheres avançam com a denúncia de abusos sexuais. As recentes acusações de assédio sexual contra um famoso artista com ligações políticas no Irão estão a testar o movimento numa sociedade conservadora dominada por homens e onde a sexualidade é um tabu.

O movimento #MeToo surgiu em 2017 nos EUA após as alegações de abuso sexual contra o famoso produtor cinematográfico de Hollywood Harvey Weisntein, mas rapidamente se tornou um movimento global que procura expor a magnitude do assédio e violência sexual.

Agora, o movimento está a despertar no Irão, tendo sido impulsionado no final de agosto após denúncias difundidas nas redes sociais contra mais de 100 homens iranianos, incluindo o antigo gerente de uma empresa eletrónica, um destacado professor de sociologia e o proprietário de uma livraria de renome.

No entanto, a introdução do movimento no Irão atingiu um outro patamar quando um artista de 80 anos, internacionalmente aclamado e com ligações políticas, passou a integrar a lista de incriminados. Em entrevistas para o New York Times, pelo menos 13 mulheres acusaram Aydin Aghdashloo, pintor, escritor e crítico de cinema iraniano, de má conduta sexual por um período de 30 anos. A maioria são suas antigas alunas, mas também jornalistas que desenvolveram reportagens sobre arte e cultura.

A partilha das histórias por parte destas mulheres é um passo inédito na sociedade conservadora iraniana, onde o sexo feminino é submisso, discutir a sexualidade é culturalmente interdito, as relações sexuais extraconjugais são ilegais e o ónus da prova para vítimas de crimes sexuais é complexo. No Irão, uma mulher vítima de violação é, geralmente, considerada culpada.

Desta forma, o movimento #MeToo está a desafiar a sociedade iraniana ao observar a forma como as autoridades tratam os agressores e as vítimas de violência sexual.

Nos EUA, por exemplo, o movimento feminista custou 23 anos de prisão a Harvey Weinstein e levou à destruição de carreiras de muitos outros homens influentes em todo o mundo. No caso iraniano, o #MeToo é ainda uma novidade, mas já existem sinais de que a estrutura de autoridade controlada pelo sexo masculino começou a responder às acusações contra estes homens.
“O ponto de viragem”
O chefe da polícia de Teerão anunciou, a 12 de outubro, que o proprietário de livraria Keyvan Emamverdi confessou ter abusado sexualmente de 300 mulheres, depois de 30 delas terem seguido com uma queixa judicial. A polícia acrescentou que Emamverdi seria acusado de “disseminar a corrupção na Terra” (“Mofsed-e-filarz”), um crime punível com pena de morte.

A empresa de comércio eletrónico Digikala abriu uma investigação ao seu antigo gerente e pediu desculpa às funcionárias. Já a associação de sociologia do Irão expulsou o professor denunciado e exigiu uma política de tolerância zero nas universidades.

Relativamente ao artista iraniano Aghdashloo, foi retirada uma obra de sua assinatura de uma famosa coleção literária e pelo menos três mulheres anunciaram que estão a considerar avançar com um processo judicial. Aghdashloo recusou os pedidos de entrevista do New York Times, mas negou veementemente as acusações e, de acordo com seu advogado, já entrou com uma ação judicial contra uma das denunciantes.

“Este é um ponto de viragem para o abuso sexual. O maior tabu para as mulheres no Irão tem sido o sexo e a violência e o abuso sexual”, disse Elnaaz Mohammadi, cofundadora da Dideban Azar, ou Abuse Watch, uma instituição educacional no Teerão.

No entanto, há ainda um longo caminho a percorrer, dado que Aghdashloo é ainda descrito pelos meios de comunicação estatais como uma figura de relevo, sem ser feita qualquer referência às acusações de abuso sexual.
"Harvey Weinstein do Irão"
As acusações anónimas contra Aghdashloo surgiram pela primeira vez em 2018, quando um jornalista de investigação iraniano, Afshin Parvaresh, partilhou no Instagram que entrevistou 21 mulheres, incluindo uma menor, que dizem ter sido abusadas sexualmente pelo artista. Parvaresh diz ter recebido ameaças violentas e o advogado de Aghdashloo negou qualquer responsabilidade do seu cliente.

A gravidade em torno do caso de Aghdashloo ganha ainda mais pertinência dado que todas as 45 entrevistadas pelo New York Times – incluindo antigas estudantes, uma professora assistente de longa data, proprietárias de galerias de arte, atrizes, uma agente de arte do Teerão e jornalistas – afirmaram que a má conduta sexual do artista iraniano perante as suas alunas do sexo feminino era há muito conhecida no círculo de artes do Irão. No entanto, nunca foi feito nada a respeito desse comportamento. Aghdashloo trabalhou como consultor, autor e apreciador de arte para a Astan Quds Razavi, uma organização religiosa e económica controlada pelo líder supremo do Irão, Ali Khamenei. Segundo antigos alunos, o artista iraniano gabava-se frequentemente de ter ligações com o Governo e autoridades religiosas e do seu grau de impunidade.

Das 45 entrevistadas, 13 dizem ter sido vítimas de Aghdashloo, incluindo uma que teria apenas 13 anos na altura da violação. Dezanove das pessoas entrevistadas descreveram mesmo o pintor e escritor como o “Harvey Weinstein do Irão”.

“A reputação de Aghdashloo era um segredo aberto no mundo da arte, mas ninguém fez nada a respeito disso”, disse Solmaz Azhdari, de 32 anos, antiga aluna de pintura.

Uma das assistentes de ensino de Aghdashloo diz ter testemunhado a má conduta sexual frequente do artista iraniano em relação a estudantes do sexo feminino. Depois de o ter confrontado, Aghdashloo respondeu que as mulheres deveriam considerar o seu afeto "um privilégio".

“Sinto-me aliviada por um homem que abusou de tantas mulheres e meninas estar finalmente a ser denunciado”, disse Afarin, uma professora em Teerão.
De vítimas a criminosas
Ativistas dos direitos das mulheres iranianas reconhecem o difícil caminho a percorrer pelo movimento #MeToo no Irão, dado que a denúncia de violação é muito sensível para a mulher do ponto de vista legal.

“Uma mulher que é vítima pode rapidamente transformar-se numa criminosa se não conseguir provar a violação”, disse Shadi Sadr, um reconhecido advogado iraniano e defensor dos direitos humanos atualmente estabelecido em Londres. “Quando a mulher testemunha que houve relações sexuais, ela também está a testemunhar contra si própria”, explicou o advogado, acrescentando que pode mesmo ser acusada de adultério.

Ainda assim, os ativistas olham com esperança para o crescimento do movimento #MeToo no Irão e das denúncias contra os abusos sexuais. Leila Rahimi, uma advogada no Teerão, afirma que cada vez mais mulheres lhe perguntam como podem prosseguir com acusações de agressões sexuais. “Não se pode negar que este crime está a acontecer continuamente na nossa sociedade”, disse Rahimi a New York Times. “Tanto para as mulheres como para os homens, o silêncio não melhora as coisas”, concluiu.
Tópicos
pub