Myanmar. Tecnologia ocidental usada na repressão militar

por Inês Moreira Santos - RTP
Lynn Bo Bo - EPA

Desde que o golpe militar, a 1 de fevereiro, atingiu a frágil democracia de Myanmar, milhares de pessoas têm-se manifestado contra a tomada de poder dos militares. Nas últimas semanas, os generais birmaneses têm intensificado o recurso à força para enfraquecer a mobilização a favor do regresso do Governo civil, mas foi agora revelado que a Junta Militar de Myanmar tem à disposição "software e hardware ocidental, pronto para espiar, atacar, ou reprimir ".

Durante quase meio século de ditadura militar, os generais birmaneses usavam "ferramentas totalitárias" mais arcaicas mas eficazes. Agora, os militares que tomaram o poder em Myanmar no mês passado, alegando irregularidades durante o processo eleitoral do ano passado, têm "um arsenal muito mais sofisticado à sua disposição", revelou o New York Times.
"Drones de vigilância produzidos em Israel, dispositivos europeus de cracking de iPhone e software norte-americano capaz de invadir computadores e espiar o conteúdo destes" são algumas das novas ferramentas usadas na repressão militar em Myanmar.

Quando se pôs fim ao regime militar em 2011, foram adquiridas algumas das novas tecnologias que permitiram que a população da antiga Birmânia se integrasse e conectasse com o mundo, depois de décadas isolada. Mas, aproveitando a atualização e aquisição de dispositivos do Governo, foram também compradas tecnologias de espionagem com o alegado objetivo de modernizar as agências de segurança.

De acordo com a publicação, os generais da Junta Militar de Myanmar têm à disposição "software e hardware ocidental, pronto para espiar, atacar, ou reprimir, seja por via de drones fabricados em Israel, seja com dispositivos europeus de cracking de iPhone ou serviços de spy e malware norte-americanos com a capacidade de invadir computadores e retirar a informação detida por qualquer manifestante antirregime", revelam documentos do país a que o NYT teve acesso.

Estes documentos, que relatam os dois últimos anos de compras do Governo de Myanmar, provam que houve uma vontade especial em adquirir a mais recente tecnologia de vigilância militar e que as forças armadas birmanesas "usaram a fachada da democracia para facilitar estas compras".

A compra destes materiais foi confirmada ao NYT por dois membros da comissão parlamentar de orçamento do país, que pediram o anonimato devido ao clima político delicado, e que ainda acrescentaram que os orçamentos propostos para o Ministério de Assuntos Internos e Ministério dos Transportes e Comunicações refletem essas aquisições.

"Algumas dessas tecnologias de "função dupla", ferramentas de segurança e de repressão, estão a ser implantadas pelo Tatmadaw, nome pelo qual os militares de Myanmar são conhecidos, para atingir os opositores do golpe de 1 de fevereiro", adianta ainda a publicação.
Invasão de telefones e computadores pessoais

Fornecidos pela Justice For Myanmar - grupo que expõe os abusos do exército contra os manifestantes antirregime -, os documentos revelam que foram gastas dezenas de milhões de dólares em tecnologia que permite invadir e espiar telefones e computadores, além de localizar pessoas e ouvir conversas.

A polícia e os militares de Myanmar têm aumentado o uso da força nos últimos dias na tentativa de conter os protestos contra a junta militar, recorrendo a gás lacrimogéneo, balas de borracha, canhões de água e, cada vez mais, armas com munições reais. Mas têm recorrido também a novas tecnologias como "armas digitais" para reprimir os opositores.

"Os militares agora estão a usar essas mesmas ferramentas para reprimir brutalmente os manifestantes pacíficos que arriscam as suas vidas para resistir à junta militar e restaurar a democracia", disse Ma Yadanar Maung, porta-voz da Justice for Myanmar.

As forças armadas tiraram partido do peso que continuaram a exercer no país para realizar compras de altos valores em sistemas de cibersegurança e defesa informática, a Estados democráticos, como explica a publicação.
"Internamente os militares estão a utilizar estes instrumentos para combater os manifestantes e ativistas pró-democracia", denunciou ainda Ma Yadanar Maung.

Os orçamentos a que o NYT teve acesso detalham as empresas e a funcionalidade das ferramentas adquiridas. Em alguns casos, até é especificado o uso proposto, como combate à "lavagem de dinheiro" ou investigação de "crimes cibernéticos".

"O que vemos os militares de Myanmar a prepararem é um conjunto abrangente de métodos de cibersegurança e perícia forense", explicou Ian Foxley, invesitigador do Centro de Direitos Humanos Aplicados da Universidade de York. "Muito disso é uma questão de ter capacidade para uma guerra digital".
Europa, Israel e EUA vendem tecnologia a Myanmar

Segundo os documentos, há algo mais grave nesta situação: "as empresas israelitas, norte-americanas e europeias, mesmo depois da expulsão dos muçulmanos rohingya em 2017, facto que levou muitos governos a recusarem-se a abastecer o país com material militar, continuaram a fornecer instrumentos de vigilância ao regime de Myanmar".

Como aponta a publicação, a modernização dos equipamentos de vigilância militar em Myanmar depende, em parte, de patronos como a China e a Rússia, que não se opõem a fornecer a regimes autoritários materiais e tecnologias usadas para reprimir e espiar a população. No entanto, também houve empresas ocidentais que viram os cinco anos de governo civil-militar do país como uma oportunidade, legal e politicamente, para construir um mercado de fronteira no que parecia ser uma democracia nascente.

Os documentos indicam que a tecnologia de vigilância produzida por empresas israelitas, norte-americanas e europeias chegou a Myanmar, apesar de muitos dos governos ocidentais proibirem essas exportações.

Mesmo em países que não impediam oficialmente este tipo de comércio, muitos fornecedores ocidentais tinham cláusulas nas suas diretivas empresariais que proibiam que a sua tecnologia fosse usada para violar os direitos humanos.

Contudo, houve empresas que venderam os materiais às forças armadas birmanesas, diretamente aos militares ou aos ministérios, evitando as burocracias que podiam inviabilizar o negócio e exportação. E houve ainda outras que, não tendo qualquer proibição, continuaram a vender os dispositivos tecnológicos sem averiguar para que seriam usados ou quem iria usá-los.

O certo é que, segundo os documentos, algum do hardware que foi vendido à polícia para localizar e prender potenciais criminosos, está a ser usado para identificar opositores ao golpe militar.

A documentação relativa às detenções após o golpe de Estado mostra que as forças de segurança de Myanmar fizeram uma triangulação entre as publicações dos opositores nas redes sociais e os endereços individuais das suas ligações na Internet para descobrir as suas moradas - trabalho de investigação que só podia ter sido realizado com o uso de tecnologia estrangeira especializada, de acordo com especialistas da infraestrutura de vigilância de Myanmar.

"Mesmo com um Governo civil, havia pouca supervisão dos gastos militares com tecnologia de vigilância", disse Ko Nay Yan Oo, especialista do Fórum do Pacífico do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, que estudou os militares de Mianmar. "Agora estamos sob um regime militar e eles podem fazer tudo o que quiserem".

Um dos exemplos de destinos orçamentais revelados nos documentos indica que para o orçamento de 2020/2021 do Ministério de Assuntos Internos foram incluídas unidades da MSAB, uma empresa sueca que fornece ferramentas de dados forenses para militares em todo o mundo - estas ferramentas podem aceder ao conteúdo de dispositivos móveis e recuperar ficheiros eliminados, de acordo com as anotações no orçamento.

Henrik Tjernberg, presidente da MSAB, confirmou que parte da "tecnologia desatualizada" da empresa foi parar a Myanmar há alguns anos, mas garantiu que não foram vendidos mais equipamentos ao país devido à proibição de exportação da União Europeia.

Os dados sobre os orçamentos mais recentes do Governo de Myanmar revelam ainda que estava incluido também o software forense MacQuisition, projetado para aceder e colher dados de computadores da Apple. Este software é produzido pela BlackBag Technologies, uma empresa norte-americana que foi comprada, no ano passado, pela israelita Cellebrite.

Ambas as empresas, além de tudo, desenvolvem outras ferramentas sofisticadas para a infiltração em dispositivos bloqueados ou criptografados e o acesso aos seus dados, incluindo informações de rastreamento de localização.

Uma porta-voz da Cellebrite, no entanto, afirmou que a empresa parou de vender para Myanmar em 2018 e que a BlackBag não vendia para o país desde que foi adquirida, no ano passado. A empresa, segundo a mesma fonte, não vende para países sancionados pelos Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido ou Israel.

Mas, os disposivos tecnológicos da Cellebrite têm sido usados ​​pela polícia birmanesa para apresentar provas em processos judiciais, de acordo com U Khin Maung Zaw, um dos principais advogados de direitos humanos de Myanmar e que está a representar e defender Aung San Suu Kyi, a líder civil detida no golpe de Estado.

"O departamento de segurança cibernética ainda está a usar essa tecnologia", disse Khin Maung Zaw ao NYT. "Pelo que sei, usam o Cellebrite para copiar e recuperar dados de telemóveis".
Veículos israelitas no golpe militar

Uma das revelações sobre as tecnologias ocidentais usadas pelos militares em Myanmar foi a utilização de veículos blindados da Gaia Automotive Industries, uma empresa israelita, no dia do golpe militar.

É de realçar que estes veículos só foram produzidos em massa, para comercialização no estrangeiro, depois da proibição de 2018 de venda de armas a Myanmar.

Embora o responsável da empresa, Shlomi Shraga, tenha afirmado não ter visto qualquer fotografia ou imagem destes veículos a atravessar a capital de Myanmar durante o golpe de Estado de 1 de fevereiro, garantiu que todas as suas exportações tinham as licenças necessárias do Ministério da Defesa de Israel.

Recorde-se que o golpe militar, no dia 1 de fevereiro, atingiu a frágil democracia de Myanmar depois da vitória do partido de Aung Sang Suu Kyi nas eleições de novembro de 2020. Os militares tomaram o poder alegando irregularidades durante o processo eleitoral do ano passado, apesar de as autoridades eleitorais terem negado a existência de fraudes.

Desde então, milhares de pessoas têm-se manifestado contra o golpe militar, sobretudo na capital económica, Rangum, e em Mandalay, a segunda maior cidade do país.

Desde a sua detenção na manhã de 1 de fevereiro que Aung San Suu Kyi não é vista em público.
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