Como os salários alemães caíram numa década

por Texto: António Louçã. Imagem: Carlos Oliveira. Edição: Nuno Patrício, Pedro Pina
Uma aspiração dos trabalhadores, muitas vezes em vão: "Tudo está mais caro. Nós também" Michaela Rehle, Reuters

Em 2004, a Sociedade para a Língua Alemã escolheu a expressão "Hartz IV" como palavra do ano. Ela condensava um conjunto de reformas do mercado de trabalho que o Governo social-democrata de Gerhard Schröder confiara a Peter Hartz, um antigo director de pessoal da Volkswagen. Esse pacote de reformas é também conhecido como "Agenda 2010" e em França é hoje tomado como modelo para a política anunciada pelo presidente Macron.

Hoje, 13 anos decorridos, falar em "Hartz IV" na Alemanha é o mesmo que falar em degradação social. Quem cai sob a alçada de Hartz IV" é um desempregado ou sub-empregado crónico, despojado de todas as suas poupanças para poder receber do Estado uma ajuda a todos os títulos insuficiente.

O chanceler Gerhard Schroeder e o presidente da central sindical DGB,Michael Sommer, em 2002, quando se discutia a reforma do mercado de trabalho. Foto de Christian Charisius, Reuters

Os números oficiais apontam para mais de 4,4 milhões de "receptores de Hartz IV". Mas o trauma de ser contado nessa estatística é tal que a RTP teve dificuldade em encontrar alguém que relatasse a sua experiência como "receptor de Hartz IV". Michael Begoll foi a excepção, que se dispôs a mostrar-nos as várias dimensões do problema.

Begoll foi cidadão da antiga RDA e conserva desse tempo um apartamento relativamente espaçoso num bairro central de Berlim. A pressão gentrificadora ameaça também esse último resquício de um conforto perdido.

Em todo o caso, Begoll tem uma visão de conjunto sobre a transformação que significaram as reformas do mercado de trabalho introduzidas pela dupla Schröder-Hartz.

A par de uma perda drástica de poder de compra, a introdução de "Hartz IV" significou um agravamento de prepotências da burocracia contra os contribuintes da segurança social. Para obrigar trabalhadores qualificados a fazerem trabalhos não qualificados, e para impor-lhes vencimentos muito inferiores, os funcionários dos centros de emprego recorrem a uma complexa panóplia de ameaças e sanções.

Neste contexto, Begoll explica também como pode haver pessoas forçadas a aceitarem "empregos de 1 euro", com a cenoura e o chicote - o engodo de ganharem mais 160 euros por mês, além de "Hartz IV", e a ameaça de verem cortado o próprio "Hartz IV", se não aceitarem esses trabalhos pagos a um euro por hora.

A outra palavra da moda é "Aufstocker" - o acrescentador -, alguém que tem um emprego mas ganha tão pouco que não atinge sequer o mínimo de subsistência tal como ele é definido em "Hartz IV". Pessoas nessas condições dirigem-se ao centro de emprego depois de receberem o magro salário, e aí devem ver o salário acrescentado até um nível considerado decente.

Situações de "Aufstockung" verificam-se mesmo em serviços públicos que funcionam em estreita ligação e com parcial responsabilidade dos governos regionais, como refere Sascha Kraft, dos serviços não-médicos agrupados na CFM, filial do hospital Charité criada por iniciativa do Governo regional de Berlim.

Ulrich Schneider, director-geral de uma organização de combate à pobreza, lembra, por seu lado, que o pagamento de "Hartz IV" ou o acrescentamento de salários inferiores ao mínimo de subsistência pressupõe uma condição muito importante: não ter mais nada. Quem queira candidatar-se a estas prestações do Estado, terá de desfazer-se primeiro de todas as suas poupanças, terá mesmo de escolher entre essas prestações e um casamento ou uma união de facto com outra pessoa mais bem remunerada.

Também Michael Fielsche fala da expropriação das poupanças do trabalho. Fielsche é o animador de um grupo autodenominado "Vítimas da Agenda 2010", que realiza regularmente acções de rua, evocando os nomes de cada pessoa que morreu ou pôs termo à vida devido a uma situação social desesperada.

Ringo Schuster, mecânico, activista contra os processos de despejo, viveu durante 30 anos na Nicarágua e regressou à Alemanha precisamente quando começava a fazer-se sentir a viragem neo-liberal da "Agenda 2010". Ele encontra-se por isso num posto de observação privilegiado para descrever o choque causado por essa viragem, sem os paliativos de uma gradual preparação psicológica, tal como eles foram servidos aos residentes na Alemanha.

Schuster recorda a discussão que agitava a sociedade alemã quando partiu. Ela girava em torno da redução do tempo de trabalho, para toda a gente ter alguma coisa para fazer. Depois, quando regressou da Nicarágua, encontrou uma discussão diametralmente oposta, sobre a elevação da idade da reforma, sobre a liberalização do horário de trabalho, sobre a redução das férias. Tudo gira à volta das poupanças que o Estado pretende fazer.

A desarticulação do mercado de trabalho com a introdução da "Agenda 2010" não se faz sentir apenas na precarização extrema dos "receptores de Hartz IV" ou dos "acrescentadores". Também em segmentos habitualmente mais bem pagos mudou drasticamente o nível salarial médio.

Tyrone Schmadlowski concluiu há três anos a sua formação de electricista. Conhece, para esse arco de tempo curto e recente, o mercado de trabalho da sua profissão. E observa que, em dois anos apenas, o salário-hora oferecido a um electricista caíu de uns 15 ou 16 euros, em média, para 11 ou 12.

A queda do salário relaciona-se com um "exército de reserva", de trabalhadores por vezes com qualificações elevadas, vindos de países do Leste europeu. Estes tendem a considerar salários de 11 ou 12 euros por hora como muito bons, em comparação com os praticados nos respectivos países. E acabam então por aceitar condições inferiores às que habitualmente vigoravam na Alemanha para esse trabalho. Por seu lado, os trabalhadores alemães, que durante décadas contaram com melhores condições, vêem-se subitamente confrontados com o ultimato de aceitarem novas regras ou serem despedidos.

Para Schmadlowski, o salário mínimo de 8,5 euros por hora é "uma anedota", que não traz qualquer solução aos trabalhadores, e apenas procura resolver um problema da competitividade dos empresários alemães com os seus concorrentes europeus, geralmente sujeitos a salários mínimos francamente superiores.


Fielsche afirma que já não existem empregos com um mínimo de condições e que isso obriga muita gente a ter dois ou três empregos para o dinheiro lhe chegar até ao fim do mês.

Schuster lembra que o capital sempre esteve contra a fixação de um salário mínimo. Agora que ela se tornou inevitável, conseguiu que o salário mínimo fixado seja tão baixo que, numa família com dois salários mínimos, um deles é inteiramente consumido no aluguer. Também Schuster assinala aqui o fenómeno do duplo emprego, para compensar o baixo salário.

Schneider sublinha também a insuficiência do salário mínimo de 8,5 euros e acrescenta ainda um outro ponto importante: qualquer salário mínimo abaixo dos 12 euros por hora não garante, mais tarde, a quem se reformar uma pensão digna.

Tendencialmente, a precariedade torna-se a regra do mercado de trabalho. Schmadlowski aponta exemplos clássicos, na área da limpeza urbana, que existem no edifício Sony, em Potsdamerplatz, o ex-libris da prosperidade metropolitana de Berlim.

Begoll refere-se ainda à dimensão da precariedade como factor de falsificação estatística: aos indicadores de prosperidade económica, pretende-se juntar indicadores sociais satisfatórios, deixa-se de contar como desempregado quem faça um simples biscate e conta-se como trabalhador independente o assalariado que se encontra hoje na mais completa dependência do arbítrio patronal.

Para Ulrich Schneider, este quadro permite um veredicto devastador sobre a "Agenda 2010" como engenharia política para criar um massivo sector de baixos salários e para mudar radicalmente o equilíbrio de forças e de rendimentos entre as classes.

A "Agenda 2010" não pode ser encarada como uma originalidade absoluta da Alemanha, tal como a política de Margareth Thatcher não pôde ser vista como extravagância insular do Reino Unido nos anos 1980. Houve na "Agenda 2010" laivos de pioneirismo, mas nada que torne a Alemanha um caso único.

Peter Hartz (esq.), com o chanceler Gerhard Schroeder, em 2002. Foto de Fabrizio Bensch, Reuters

Nada é mais revelador do europeísmo da "Agenda 2010", como receita neo-liberal, do que o destino do seu principal arquitecto, Peter Hartz: caído em desgraça na Alemanha, é agora reabilitado como guru do presidente Macron, para as reformas que este anuncia em França.
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