Foi um discurso do Papa Francisco que motivou a associação de voluntariado italiana Combinazione a dedicar-se ao acolhimento de migrantes e é hoje do trabalho deste e outros centros que o Estado depende para lidar com um fluxo migratório histórico.
"O Papa pediu à comunidade católica para acolher migrantes, e isso abriu-nos os olhos. Em 2015, candidatámo-nos a projetos de acolhimento de requerentes de proteção internacional, que iniciámos em 2016", conta Michela Bussolari à Lusa, na sede da associação, uma casa de dois andares em Busto Arsizio, que esta voluntária e a sua família partilham com quatro mulheres migrantes.
No piso de cima, Michela vive com o marido e três filhos, no de baixo funciona a sede da associação e residem quatro mulheres -- da Nigéria, Guiné-Conacri e Somália.
As migrantes dispõem de quartos, casa de banho, uma cozinha e uma sala comum. Num outro apartamento não distante, estão alojados sete migrantes do sexo masculino -- do Iraque, Curdistão, Paquistão, Nigéria, Tunísia e Egito - e ainda há um terceiro pequeno apartamento, aberto na altura da pandemia da covid-19, e onde está atualmente uma família do Sri Lanka, que já recebeu permissão para permanecer em Itália, "mas não tem ainda independência financeira".
"Na família, todos ajudam", diz Michela, professora, que trabalha como voluntária na associação desde o início, e a quem muitos migrantes tratam por `Mamma` (`Mamã`, em português). O caminho não tem sido fácil, admite, e por vezes as forças parecem faltar, tantas são as dificuldades, que começaram bem cedo.
Criada em 2007, a associação de voluntariado Combinazione começou por desenvolver o seu trabalho em África, incluindo Moçambique, seguindo-se o Brasil e outros países da América Latina e também da Ásia. Hoje é uma peça de um sistema de acolhimento de migrantes em está à beira do colapso, e em que a falta de resposta e de apoios do Estado provoca "desespero" e "raiva" entre aqueles que tentam ajudar até ao limite das suas capacidades.
É na localidade de Busto Arsizio, na província de Varese, região da Lombardia, cerca de 35 quilómetros a norte de Milão, que funciona este "centro de acolhimento extraordinário", um dos milhares para onde os requerentes de asilo em Itália, uma vez identificados à chegada a território italiano (nos chamados `hotspots`) e após receberem os primeiros cuidados médicos, são reencaminhados e ficam a aguardar resposta ao pedido de proteção internacional.
Conhecidos pela sigla italiana CAS, estes centros podem ser geridos tanto por entidades e cooperativas com ou sem fins lucrativos, sob autoridade direta das prefeituras, e em modo de acolhimento coletivo -- que inclui instalações com capacidade para receber até centenas de pessoas, incluindo hotéis e pensões -- ou disperso, mais "familiar", com um pequeno número de requerentes de proteção internacional a serem instalados em apartamentos.
No caso de Busto Arsizio, o CAS é gerido pela Combinazione, uma cooperativa social sem fins lucrativos constituída sobretudo por missionários combonianos.
"Busto Arsizio não queria este centro", conta Michela, apontando que esta localidade é "burguesa, de direita e de mentalidade fechada". Quando teve início a guerra na Ucrânia, na paróquia local foi pedido que se abrissem as portas de casa a refugiados ucranianos e várias mãos se levantaram. Michela pediu que também alguém acolhesse uma família do Mali e ninguém se voluntariou, recorda com mágoa.
Mas a maior dificuldade que a associação enfrenta é a falta de apoios financeiros e o longo processo burocrático, que leva a que muitos requerentes de asilo esperem bem mais do que os seis meses previstos na legislação por uma resposta ao seu pedido.
"Agora, chegam a esperar dois, quatro anos. Temos um caso de uma rapariga que está há seis anos à espera", diz. "A ajuda que damos dá para alguns meses, não dá para anos", sublinha.
No início, lembra, havia um apoio financeiro da prefeitura, de 36 euros ao dia por pessoa. Esse apoio foi reduzido para 18 euros quando o líder do partido anti-imigração Liga, Matteo Salvini -- atualmente vice-primeiro-ministro no governo de coligação de direita e extrema-direita -- assumiu a pasta de ministro do Interior, em 2018.
"Muitas cooperativas disseram `basta` e fecharam portas. Nós não conseguimos fazê-lo, ainda assim. A prefeitura ficou em pânico. Atualmente o apoio é de 24 euros, mas para que dá isso?", questiona, lembrando os encargos relacionados por exemplo com o apoio psicológico de que muitos recém-chegados necessitam.
"Nos hospitais públicos não há médicos que falem árabe, por exemplo, há que ir ao privado, e é muito caro", sublinha Michela.
No caso da Combinazione, o facto de haver vários voluntários, incluindo uma médica, "permite libertar dinheiro para cuidados de saúde, incluindo mental, e educação", desde logo a aprendizagem de italiano, mas regra geral o parco apoio financeiro prestado pelo Estado significa que as CAS têm de fazer escolhas quase impossíveis.
Num ano em que a Itália está a registar um fluxo anormalmente elevado de chegadas, as diversas províncias queixam-se de estar à beira do colapso e criticam um sistema de redistribuição de migrantes pelo território em que o critério agora tido em conta é o da extensão territorial e não densidade populacional.
Face à pressão cada vez maior, o prefeito de Varese escreveu uma carta a todos os autarcas da província a pedir que contribuíssem para a procura, nos respetivos territórios, de imóveis que possam ser utilizados, como hotéis desativados, colónias, pensões e casas de férias, lançando também um apelo aos cidadãos.
"Às vezes ligam-me da Prefeitura [de Varese] à noite ou ao domingo, a pedir para recebermos alguém que acabou de chegar. Até já nos disseram que a nossa sala é grande e podíamos instalar lá mais três camas. Mas não aceitamos isso", diz Michela, cansada de ouvir o argumento de situação de emergência. "Em emergência a nível de acolhimento vivemos nós há muitos anos", diz.
Michela diz até compreender a Prefeitura. "Estão desesperados, não sabem o que fazer", diz. A Lombardia é a região de Itália que, de acordo com o sistema de redistribuição em vigor, mais migrantes acolhe atualmente, cerca de 17 mil.
Face a um Estado que não funciona e ainda quer impor as suas regras a quem o substitui no seu trabalho, advoga "prosseguir o projeto, mas com desobediência civil", já praticada pela associação, assume, quando por exemplo o governo emitiu no início de agosto uma circular ministerial dirigida às CAS a reclamar maior rigidez, com a expulsão dos migrantes que não cumpram o "recolher obrigatório" às 22:00, em vez do anterior sistema faseado de advertências.
E o problema não se limita ao alojamento, mas também à integração. Os migrantes só podem entrar no mercado de trabalho após terem a permissão de residência, que, face à pressão migratória atual e a uma máquina burocrática que não lhe consegue dar resposta, pode demorar anos. E o mesmo se aplica aos cuidados de saúde, aos quais não têm acesso sem o cartão de saúde, por vezes ainda mais moroso.
"Por lei, a prestação de cuidados de saúde é obrigatória, mesmo para indocumentados. Mas muitos, incluindo crianças, não podem ir a um hospital porque não têm o cartão de saúde... faz lembrar os Estados Unidos, e não é justo que sejamos nós a pagar", diz. Em conjunto com outras associações, já escreveram ao governo a queixar-se desta e de outras dificuldades, mas nunca obtiveram resposta.
Michela admite que, perante um Estado que não funciona e não dá sinais de o querer fazer, "a raiva vai crescendo e é forte".
"Não se trata apenas de um problema político ou económico, mas sim moral. Não é justo que tenhamos de substituir o sistema", diz, confessando um cansaço acumulado de uma luta inglória, a que se junta a falta de perspetivas encorajadoras, quando a exigência é cada vez maior.
"Sou cristã, mas admito que não estou nada otimista. Não creio sinceramente que a situação vá melhorar, pelo contrário, só tende a piorar. Problemas com migrantes [em Itália] temos já desde os anos de 1980, com o êxodo de albaneses, por exemplo. Mas aquilo a que se assiste hoje é a uma situação calamitosa. Até quando conseguirei continuar? Sinceramente, não sei", diz, despedindo-se da Lusa para acorrer a mais uma "urgência" após receber um telefonema de um dos migrantes que o centro acolhe.