"O meu olho explodiu". Amnistia denuncia uso excessivo de armas contra manifestantes pacíficos

O uso "excessivo e incorreto" de balas de borracha, gás lacrimogéneo e outras armas menos letais pela polícia contra manifestantes pacíficos é cada vez mais comum por todo o mundo, provocando vários mortos e feridos graves em anos recentes. O alerta é da Amnistia Internacional, que num novo relatório relata casos de cegueira, fraturas ósseas, lesões cerebrais e nos órgãos genitais ou ainda traumas psicológicos.

“O meu olho explodiu”. É esta a declaração que dá nome ao relatório da Amnistia Internacional em conjunto com a organização não-governamental Omega Research Foundation, segundo o qual as lesões oculares são as mais abundantes.

Segundo estas ONG, as autoridades banalizaram o disparo de balas de borracha e o uso de gás lacrimogéneo como método para dispersar e castigar multidões, possivelmente por saberem que estas armas não são tão letais - e ignorando que podem causar danos graves ou mortes.

“Por todo o mundo, as forças de segurança estão a utilizar, de forma sistemática e indevida, balas de borracha, de plástico e outras armas de aplicação da lei para suprimir com violência as manifestações pacíficas”, denunciam as entidades, apelando a um “controlo rigoroso do uso destas armas e a um tratado global para regular o seu comércio”.

A investigação, realizada em mais de 30 países nos últimos cinco anos, destaca um “aumento alarmante” de casos de ruturas do globo ocular, descolamentos de retina e perda total da visão em vítimas destes episódios de violência.
Entre as armas menos letais utilizadas indevidamente estão projéteis de impacto cinético (balas de borracha e de plástico), chumbo de borracha e granadas de gás lacrimogéneo disparadas diretamente contra os manifestantes.
Um dos casos aconteceu nos EUA, onde um manifestante foi atingido no rosto no Estado do Minnesota, há três anos. “O meu olho explodiu com o impacto da bala de borracha e o meu nariz deslocou-se para o lado do olho oposto. Na minha primeira noite no hospital, recolheram os pedaços do meu olho e coseram-no de novo”, contou à Amnistia.

“Depois, colocaram-me o nariz no lugar e reconstruíram-no. Agora, tenho uma prótese ocular no olho perdido, por isso só consigo ver do meu olho direito”, acrescentou. À semelhança deste manifestante, outros 45 pacientes foram recebidos com lesões de balas de borracha no hospital de Minneapolis durante os protestos.

Na Europa, um dos casos de destaque teve lugar em Espanha, onde balas de borracha “do tamanho de bolas de ténis” provocaram a morte de pelo menos uma pessoa por traumatismo craniano, assim como 24 lesões graves noutros manifestantes entre 2000 e 2020. Quatro deles terão perdido a visão num dos olhos.

Em 2014, membros da Guarda Civil espanhola dispararam 145 balas de borracha e cinco granadas de fumo contra duas centenas de migrantes, refugiados e requerentes de asilo que tentavam chegar a nado a uma praia de Ceuta. Os disparos resultaram na morte de 14 pessoas por afogamento, segundo a Amnistia.
Ásia é dos continentes mais afetados
Só no Chile, nas manifestações iniciadas em outubro de 2019 contra a desigualdade social foram provocadas 440 lesões oculares, com mais de 30 casos de perda do olho ou de rutura ocular. Pelo menos 53 pessoas morreram nestes confrontos com as forças de segurança.

O relatório da Amnistia Internacional relata a história de Gustavo Gatica, de 22 anos, que ficou completamente cego depois de ter sido atingido pelas autoridades chilenas com pellets metálicos revestidos de borracha.

"Senti água a correr-me dos olhos... mas era sangue", contou à Amnistia Internacional. "Eu dei os meus olhos para que as pessoas acordassem para esta realidade", acrescentou, dizendo ter esperança de que os seus ferimentos inspirem uma mudança na ação policial desproporcionada.

Já Leidy Torres, de 24 anos, dirigia-se em 2021 para uma manifestação em Bogotá, Colômbia, quando foi atingida na cara por uma bala de borracha disparada por um polícia de choque. Acabou por perder um olho.

Polícia dispara gás lacrimogéneo nos protestos contra a idade da reforma em Paris, março de 2023. Foto: Benoit Tessier - Reuters
“Não percebi o que estava a acontecer, por isso tirei o meu telemóvel e tirei uma fotografia minha, mas não consegui vê-la. As autoridades tentam ferir-nos de uma forma que seja notada, como fazer-nos perder um olho, de modo a assustarem as pessoas para não saírem às ruas e se manifestarem”, contou.

No Iraque, as forças de segurança terão deliberadamente atacado manifestantes com granadas “dez vezes mais pesadas do que as típicas munições de gás lacrimogéneo”, matando pelo menos 24 pessoas e ferindo várias outras, revela o relatório.

na Índia, mais de mil pessoas terão cegado e 14 morreram desde 2016 em manifestações, graças ao disparo de pellets de metal pelas forças de segurança na região de Caxemira, disputada com o Paquistão há décadas.
ONG querem “Tratado de Comércio Livre de Tortura”
Para além das lesões oculares, há também registo de fraturas ósseas e cranianas, lesões cerebrais, rutura de órgãos internos e hemorragias, corações e pulmões perfurados por costelas partidas, lesões nos órgãos genitais e traumas psicológicos.

Mais de 90% das lesões causadas por balas de borracha e que afetaram “cabeça e pescoço, sistemas ocular, nervoso, cardiovascular, pulmonar e torácico, região abdominal urogenital foram graves”, de acordo com dados recolhidos de publicações científicas de 1990 a 2017.

Segundo a Amnistia, as normas sobre o uso deste tipo de projéteis “raramente cumprem as exigências internacionais sobre o uso da força, que estipulam que a sua aplicação se limite apenas a situações de último recurso, quando existem indivíduos violentos que representam uma ameaça iminente para outras pessoas”.A Amnistia Internacional documentou casos de granadas de gás lacrimogéneo disparadas contra pessoas ou multidões no Chile, Colômbia, Equador, França, Gaza, Guiné, Hong Kong, Irão, Iraque, Peru, Sudão, Tunísia e Venezuela.

Para combater “este ciclo crescente de abusos” são essenciais “controlos globais juridicamente vinculativos sobre o fabrico e comércio de armas menos letais são urgentemente necessários, incluindo os projéteis de impacto cinético”, considera Patrick Wilcken, investigador da Amnistia Internacional para questões militares, de segurança e de policiamento.

Nesse sentido, a Amnistia e 29 outras organizações apelam a um “Tratado de Comércio Livre de Tortura”, apoiado pelas Nações Unidas, para proibir o fabrico e comércio de balas de borracha e de plástico.

"Um Tratado de Comércio Livre de Tortura proibiria toda a produção e comércio de armas e de equipamento de natureza abusiva como os PIC [projéteis de impacto cinético], que são perigosos e imprecisos, balas de metal revestidas a borracha e munições com múltiplos projéteis que têm provocado ferimentos graves e cegueira em muitos manifestantes pacíficos e mortes em todo o mundo”, insistiu Michael Crowley, investigador associado da Omega Research Foundation.