O sexo, a vergonha e a SIDA. No Malawi, a arte é uma arma de combate ao vírus e ao machismo

No Malawi, a taxa de HIV é uma das maiores do mundo e uma em cada cinco adolescentes tem filhos antes dos 17 anos. Sharon Kalima quer travar este destino com o projeto Make Art/Stop AIDS.

Um desfile de moda de vestidos feitos com preservativos, um poema sobre uma sociedade que desrespeita as mulheres, uma peça de teatro sobre o assédio sexual. Estes são alguns dos projetos que nasceram das cabeças e das mãos de jovens do Malawi, que foram estimulados a usar a arte para falar sobre saúde sexual e reprodutiva e igualdade de género.

Num país em que ter filhos antes dos 18 anos é comum e usar contracetivos é raro, o projeto Make Art/Stop AIDS (MASA) é visto como disruptivo e inovador. Foi o seu impacto que lhe deu o prémio Criativo nos UN SDG Action Awards, um evento da ONU que premeia os melhores projetos pelo mundo todo na área dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.


A líder do MASA chama-se Sharon Kalima e ela própria enfrentou olhares e preconceitos, ao dizer alto que queria fazer um projeto sobre sexo, consentimento, assédio. Não é comum uma rapariga de 19 anos crescida naquele contexto sair-se com este tipo de ideias. "Foi muito difícil. Eu venho de uma localidade conservadora, de um país conservador, em que não se fala abertamente sobre sexo", admite em entrevista à RTP.

A ideia e a vontade nasceram depois de completar um projeto na faculdade. O tema era a SIDA e a missão dela e da turma era escolher um local onde se iriam deslocar para falar sobre as causas e as consequências do vírus. A maioria dos alunos escolheu ir para os hospitais, mas Sharon e as colegas do grupo escolheram uma prisão: "As prisões estão sempre de parte. Conhecemos várias prisioneiras que nem sabiam que os preservativos existiam porque já estão na prisão há muito tempo e, quando se começou a falar cá fora, elas já estavam ali detidas".

Foi esse contacto com a realidade que a fez pensar: "Fiquei com a vontade de mudar as noções da nossa juventude".
Duas em cada três pessoas no Malawi têm menos de 25 anos, revela o Malawi Youth Data Sheet 2014. Mas este é também um país em que mais de um em cada quatro rapazes têm relações sexuais antes dos 15 anos, em que menos de uma em cada três raparigas usa um método contracetivo e em que mais de uma em cada cinco adolescentes já tem um filho antes dos 17 anos.

O Malawi está também na lista mundial dos países com mais alta taxa de HIV, com uma prevalência de 10,6 por cento na população entre os 15 e os 49 anos, sendo que metade das infeções acontece nos jovens entre os 15 e os 24 anos, aponta o National Strategic Plan for HIV and AIDS 2015-2020. Em Portugal, por exemplo, a taxa de prevalência do HIV era de 0,6 por cento em 2009.

Perante este cenário, Sharon e a equipa decidiram que era urgente naturalizar o uso do preservativo masculino e feminino. Então começaram por ensinar a colocar, falaram sobre a importância de quebrar a vergonha, de comprar e ter disponível e desafiaram os estudantes a criar projetos artísticos relacionados com a contraceção. Eles levaram o desafio a sério e montaram um autêntico desfile de moda.

"O que é que vestes hoje? Preservativo Alta Costura" é um evento com um conceito particular, explica um dos estilistas: "Numa passadeira vermelha costumam perguntar o que as estrelas estão a vestir, certo? Por que não perguntar também: o que é que vestes quando tens relações sexuais? A resposta deve ser: um preservativo". E há muitos aplicados e cosidos nestes vestidos, nestas saias e até em brincos.


Mas os métodos contracetivos e a vergonha de falar sobre eles são apenas parte do problema no Malawi. Através da dança, da música, do teatro e da pintura, fala-se sobre violência no namoro, sobre práticas nefastas (como a mutilação genital feminina), sobre gravidez e desconstroem-se estereótipos de género. O consentimento é uma palavra nova para muitos.

"Se uma rapariga e um rapaz começarem a andar, ele vai achar que já tem permissão para ter sexo com ela. Se eu começar a namorar com um rapaz, ele vai achar que, por ter aceitado namorar, estou a dizer-lhe que pode fazer o que quiser", explica Sharon à RTP.

Elas próprias carregam essa expetativa. "As raparigas são ensinadas desde crianças que têm de se submeter ao rapaz e ao marido. Não conheciam esse conceito de consentimento. O homem é o cabeça da relação e é quem a domina", sintetiza.

Neste projeto da Art & Global Health Center Africa (ArtGlo), o objetivo é dar ferramentas aos jovens que irão depois a outras escolas secundárias e farão eles próprios as sessões com os outros estudantes. Ou seja, que os jovens sejam professores de outros jovens e assim sucessivamente. Depois, com o lançamento dos produtos artísticos, pretende-se envolver professores, pais e toda a comunidade, e naturalizar os temas de saúde sexual e reprodutiva.


Na sessão de entrega de prémios nos UN SDG Action Awards em Bona, na Alemanha, Sharon Kalima silenciou a sala de conferências ao ler o poema "Society, I blame you", escrito por Mwandi Tobola, uma das alunas do projeto. É uma descrição de situações do dia a dia que configuram discriminação ou violência contra as mulheres.

No local, em conversa com a RTP depois de lhe ser atribuído o prémio, Sharon revelou que o seu objetivo agora é chegar a mais comunidades no Malawi, sobretudo as rurais, onde "a maioria das raparigas nem completa a educação primária e desde cedo já esta prometida a um homem, que provavelmente tem mais três ou quatro mulheres".

Ela e a equipa do Make Art/Stop AIDS acreditam no poder da arte para contrariar as estatísticas. Soma-se a este o poder da representatividade e do exemplo: "A única maneira de criamos a mudança é fazermos com que as raparigas saibam quais são os seus direitos. Têm de ver alguém, se calhar como eu, mulher, que usa batom vermelho (risos), e que ultrapassou o que era esperado de uma mulher", sugere. Hoje, aos 29 anos, Sharon cresceu também com o projeto e a vida avançou, mas sempre com ela dona das suas decisões: "Eu sou casada, sim. Mas casei-me no meu tempo e ninguém me forçou a casar. Eu escolhi o meu marido".