OLÍMPICOS - CRÓNICA DE BASTIDORES "Compromisso"

por João Pedro Mendonça - RTP
João Pedro Mendonça - RTP

Toc toc toc. Toc toc toc. Batidas ritmadas e profissionais. "Não é um dos meus, com uma batida destas". E não era.

Ela tem o metro e sessenta padrão, o traje de hotel, preto, máscara e avental brancos como a touca de enfermeira à antiga.

Sorriso nos olhos. Acho que eu também a recebo com um desses, acima da linha da máscara:

-Please, welcome! (Ainda não sonho como se diz isto em japonês).

Surpresa!!! Ela responde em inglês:
- Thirty minutes. Thirty.

Lá brilho um bocadinho, graças ao Professor João Miguel Nunes:
- Ok! Arigatou gozaimasu!

E agradeço mesmo a pausa para a limpeza do quarto. Já tenho os neurónios em estado molho de soja, embrenhado há horas nas escalas de trabalho das equipas em Tóquio. É um bom momento para deixar o 809 e vir parir a crónica do dia 5. Já decidi sobre o que vos teclo hoje.

Cá vai.

Tóquio, dias 5 e 6.

De quatro em quatro anos, confronto-me com a estranha incompatibilidade olímpica de estar nos Jogos para exercer o dever de contar... e o de esconder. Habitualmente, esse inusitado estado de sítio deontológico exerce-se a partir de um qualquer momento, algures nas derradeiras 24 horas antes de se acender a chama mais famosa do mundo, lá no Estádio. As notas de autor da Cerimónia têm que ser distribuídas com prazo minimamente exequível para o comentador. A Cerimónia de Abertura nasce em dezenas de gabinetes dos mais conceituados autores e artistas de uma Nação organizadora durante quatro anos - desta vez 5 - de sigilos. Deles, dos autores, diretores, funcionários, atores, cantores, figurantes... Assentes na honra de guardar segredo para revelar em sincronismo o seu trabalho e orgulho na data marcada. Sem isso, o efeito nas nossas almas de consumidores, aquele espanto impressionado e intenso da première, perderia o poder mágico de nós assoberbar.

Pois bem, é isso. Quando recebo o guião do espetáculo, começa a sessão de estudo de urgência do documento secreto. Sou jornalista? Sou. Mas quem recebe o ficheiro tem o dever contratual de omitir o que sabe. A obrigação escrita de o conhecer para preparar, mas suster para manter o efeito chave da surpresa.

Momentos únicos da minha vida desde 2000, só falhei esta emoção forte de "ter o segredo na mão" em 2004, em Atenas.

E, confesso com verdade: é mesmo emocionalmente gratificante, viciante, sentir o poder de ser um dos primeiros do mundo a abrir o pdf. Ir buscar um café e sentar-me para a primeira ávida leitura, como fiz desta vez, é um luxo. Custou caro ao sono: ter mais cedo significa ter mais trabalho. Em consciência, para preparar a tarefa que mais aprecio fazer na vida, gasto todo o tempo que tenho. E desta vez chegou incomparavelmente cedo! Resultado... Nas últimas 24 horas, não é lamúria, dormi... 3.

É que o Japão - acho que vão pagar caro por isso - entregou o jogo com inigualável generosidade. É enternecedora esta candura, quase no tom de uma ingénua confiança na retidão global, a idéia de que o conteúdo do documento não está já, na hora do "3,2.1... bemvindos a Tóquio!" esparramado em tudo o que é media e quase media.

Lamento se acreditam que serei capaz de furar o compromisso. Não o farei porque já decidi há muito que vão preferir a minha honorabilidade não jornalística à minha xica esperteza casual. Até porque sei... oh, se sei, que numa pequena pesquisa de Google os que não concordarem chegam lá mais depressa do que eu demoraria a a escrever.

Há de facto uma aura de sagrado nesta escritura que lhe dá uma magia que não consigo trair. Lembro-me da última, agora que escrevo.

No Rio, foi magnífico. Já estudei a versão final no stresse cálido do Estádio, horas antes apenas, mas foi o primeiro e último dia da minha vida, creio, que consumi um guião original da Cerimónia em português. Na varanda atrás da bancada, junto ao acesso pedonal, ao lado de uma senhora que também fumava e sorria a ver-me ler. Larguei-lhe um 'Oi!' com sorriso incluido.

- Está a gostar? Perguntou ela em inglês, com sorriso também.
- Estou a adorar. E sem ter que traduzir é uma bênção. Você já leu? Questionei.

Gargalhada dela.

-Já! Também gostei. E do de Londres? Que achou?
- Espetacular!! - disse eu - Acabei Pequim a pensar "caramba, não gostava de estar na pele dos ingleses depois de uma coisa assim" E, no entanto, foi um trabalho NOTÁVEL!

Ela iluminou-se e não falou logo.

Que sorriso lhe nasceu! Lá falou, finalmente:
- Maravilhoso saber que gostou mesmo. Sou uma das pessoas que o escreveu!

Sabem... naquele momento, como agora que o revivo, senti-me milionário.
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