ONU. Myanmar à beira da guerra civil e da "catástrofe" humanitária

por RTP
Milicias apoiantes da Junta Militar de Myanmar

Desde que a Junta Militar assumiu o poder na antiga Birmânia, a insegurança e a repressão têm subido em flecha. Um relatório das Nações Unidas refere que as autoridades têm estado a raptar sistematicamente familiares das pessoas que querem deter, incluindo crianças com escassas 20 semanas.

O relator especial da ONU para o país, Tom Andrews, alertou quarta-feira o Conselho das Nações Unidas para os Direitos Humanos que as condições no país continuam a deteriorar-se e que “os atuais esforços da comunidade internacional para deter a espiral descendente dos acontecimentos em Myanmar estão simplesmente a falhar”. Um relatório da ONU sobre o país, publicado esta quinta-feira, repetiu conclusões de junho quanto a uma situação de “catástrofe de direitos humanos” e referiu que os abusos cometidos desde o golpe militar equivalem a crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Desde fevereiro, os militares de Myanmar e as suas forças já mataram mais de 1.100 pessoas, de acordo com o relatório. O documento detalha assassínios sistemáticos de alvos específicos por parte da junta, incluindo através de espingardas semiautomáticas e de atiradores contra manifestantes pró-democracia.

Armamento desenvolvido para teatro de guerra, como lançadores de morteiros e artilharia, tem também sido utilizado contra protestos e disparado sobre áreas residenciais.

“Vítimas das forças de segurança são amiúde feridas na cabeça ou no torso, o que indica que foram alvejados com intenção de fazer o máximo dano”, refere o relatório.

Desde que assumiu o poder a 1 de fevereiro até julho, a junta matou pelo menos 75 crianças, com idades compreendidas entre os 14 meses e os 17 anos, referiu Andrews.
Milhares de detidos
Os militares, acrescentou o relator, têm estado a raptar sistematicamente os familiares dos manifestantes pró-democracia que procuram deter mas são incapazes de localizar. “Tenho recebido informações fidedignas de que a junta prendeu arbitrariamente pelo menos 177 indivíduos quando o alvo original de uma operação escapou à detenção. Estas vítimas incluem crianças de tenra idade, com apenas 20 semanas”, afirmou Andrews.

Mais de 8.000 pessoas foram presas desde o golpe militar com a junta a enfrentar oposição popular generalizada e a deter quem quer que desafie o seu poder, incluindo políticos eleitos, ativistas, trabalhadores da área da saúde e jornalistas.

A maioria está detida sem requisitos processuais e sem acesso a aconselhamento jurídico ou possibilidade de contactar as famílias, afirmou o relatório do Gabinete da ONU para os Direitos Humanos.

Continuamos a receber relatos de todos os lados de técnicas de interrogatório equivalentes a maus tratos e a tortura, e temos informações credíveis de que mais de 120 detidos morreram sob custódia – alguns no prazo de 24h após a detenção”, referiu Michelle Bachelet, alta comissária para os direitos humanos, num discurso quinta-feira ao Conselho da ONU para os Direitos Humanos.

“Conflito, pobreza e os efeitos da pandemia estão a subir em flecha e o país enfrenta um vórtice de repressão, violência e colapso económico”, afirmou Bachelet.
Ameaça de guerra civil
A primeira resposta ao golpe foi uma campanha generalizada a nível nacional de desobediência civil e de manifestações pacíficas. A repressão tem estado a provocar uma resistência mais musculada, sobretudo face à violência aparentemente aleatória.

O Myanmar Now, um jornal independente, noticiou que os soldados abateram a tiro um pastor batista que tentava apagar um incêndio provocado por confrontos com militares. O seu corpo foi encontrado sem o dedo anelar da mão esquerda, referiu o responsável pela Associação de Igrejas Batistas de Thantlang, afirmando que as tropas deviam ter-lhe roubado a aliança de casamento.

Um movimento de resistência popular armada está a ganhar força, com a população civil a pegar em armas para defender as suas áreas de residência da repressão militar. Bachelet alertou para a “possibilidade alarmante de uma guerra civil desenfreada”.

As tropas da junta têm sido cada vez mais atacadas desde que um governo paralelo autoproclamado por políticos pró-democracia declarou no início deste mês uma “guerra de defesa” contra os militares.

Nos últimos dias virtualmente toda a população de uma localidade no ocidente do país, habitada por cerca de 7.500 pessoas, foi forçada a fugir dos combates entre os militares e os seus opositores, de acordo com a imprensa.

O Global New Light de Myanmar, controlado pela junta, referiu que os soldados tinham sofrido uma emboscada por parte de “uns 100 terroristas”, durante uma patrulha em Thantlang, no estado de Chin, perto da fronteira com a Índia.
Milhões de refugiados
Um residente sob anonimato afirmou à Agência France Press que a população começou a fugir segunda-feira quando os “soldados começaram a disparar ao acaso contra as janelas” das casas da localidade. “Toda a gente fugiu”, afirmou, revelando que ele próprio se refugiou numa aldeia próxima, juntamente com 500 outras pessoas. Muitas outras pessoas já atravessaram a fronteira para a Índia, acrescentou.

Outra residente contou que andou três dias com os pais idosos para chegar à Índia, após os militares lhes terem bombardeado a casa e os combates escalarem a toda a volta. “Nunca pensei em abandonar a minha casa, mesmo depois de os militares a bombardearem, mas as coisas pioraram e acabei por ter de fugir”, afirmou também à AFP, igualmente sem se identificar. O porta-voz da junta, Zaw Min Tun, rejeitou os relatos como notícias falsas e disse que 20 casas e um edifício governamental tinham sido destruídos num incêndio após confrontos dia 18 de setembro.

Andrews apelou ao Conselho da ONU para aumentar a ajuda humanitária a mais de três milhões de pessoas em Myanmar que necessitam de apoio. Só devido às ações da junta mais de 230 mil civis perderam as suas casas e são agora deslocados no próprio país.

“É necessário um maior compromisso da comunidade internacional de forma a garantir que o auxílio chegue a quem precisa dele”, afirmou o relator especial para Myanmar. “As organizações civis birmanesas que estão a salvar vidas precisam e merecem o nosso apoio. O Plano da ONU 2021 de Resposta Humanitária a Myanmar recebeu até agora somente 46 por cento dos fundos requisitados. Podemos e devemos fazer melhor”.
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